A liberdade de expressão e a tolerância entram num bar
Uma análise ao impacto das redes sociais na política atual e uma reflexão sobre da liberdade de expressão.
ARTIGO
Ao longo dos anos, os meios de comunicação foram evoluindo. A rádio e televisão eram os únicos meios propagadores de ideias, mas a Internet veio mudar esse paradigma. Cada vez mais é possível chegar a grandes públicos sem passar pelos principais canais. Isso levanta alguns problemas, desde discursos de ódio até à propagação de notícias falsas para promoção política.
Todas as pessoas têm opiniões sobre os variados assuntos. No entanto, será que devem ser propagadas de maneira irrestrita?
As redes sociais permitem que cada um expresse as suas opiniões com pouquíssimas restrições. Muitas vezes a regulação baseia-se nas denúncias por parte de outros utilizadores, mas até que ponto é que deve ser permitida essa liberdade? Qual é o papel das redes na liberdade de expressão de cada um?
Este debate veio à tona recentemente com as declarações de Elon Musk, atual dono do X (ex-Twitter). Elon defende a liberdade irrestrita de ideias e opiniões, e essa foi uma das motivações para adquirir esta rede social.
Elon considera-se um “absolutista da liberdade de expressão” e defende que a liberdade de expressão é crucial para uma democracia funcional. Inclusive, afirma que uma das razões para comprar o Twitter foi para reverter e evitar que pessoas sejam banidas por propagação de fake news. Podemos tomar como exemplo a expulsão de Donald Trump. Enfatiza ainda que estas suas decisões estão a salvar a “praça pública” da sociedade.
No entanto, pode ser feita uma leitura completamente oposta. A liberdade irrestrita de expressão, inclusive para espalhar notícias falsas, é um perigo para todos nós. Afeta as instituições democráticas, prejudicando e corrompendo-as. As notícias falsas influenciam as decisões das pessoas, e potenciam votos inconscientes baseados em pressupostos falsos.
Este fenómeno já aconteceu nas eleições norte-americanas com Donald Trump e nas eleições brasileiras com Jair Bolsonaro, que beneficiaram com a propagação de citações dos opositores que nunca haviam sido ditas; com projetos e ideias dos candidatos opositores completamente falsos e nunca por eles defendidos. Como a oposição não estava preparada para a força das redes sociais, nem acreditava que as pessoas fossem influenciadas por conteúdos sem qualquer fundo de verdade, não conseguiram desmentir tudo e foram bastante prejudicados por essas campanhas.
Podemos ir ainda mais longe; além do perigo de eleições influenciadas, estes políticos utilizaram as redes sociais para espalhar a ideia de que existiu fraude eleitoral aquando da sua derrota nas eleições. Esta ideia de fraude provocou revolta nos seus apoiantes que invadiram e vandalizaram instituições democráticas históricas como o Capitólio nos EUA e o Congresso de Brasília no Brasil. Ataques graves à Democracia que não podem ser normalizados. Em Portugal também tivemos um candidato que tentou descredibilizar as eleições e acusou uma potencial fraude, mas como os resultados foram do seu agrado, abandonou a tese rapidamente. A questão que fica é: Se não tivesse os resultados pretendidos, será que reagiria da mesma maneira? A partir do momento que há uma rede social que permite que se propaguem estas ideias, corremos o risco de que atentados à Democracia voltem a acontecer.
Os perigos da liberdade de expressão irrestrita não afetam somente a democracia. Também interferem na vida de muitas pessoas, e muitos utilizadores do X que aproveitam esta liberdade para propagar discursos muito perigosos com ideologias NAZIS, utilizando o argumento de que é apenas a sua opinião.
Além de discursos de ódio existem comunidades mais específicas onde são partilhados conteúdos e experiências relacionados a temas específicos. Uma das que mais me preocupa é a “edtwt”, comunidade de pessoas que sofrem com distúrbios alimentares, sendo o mais comum a anorexia. O grande problema desta comunidade é que não é um grupo de ajuda para que essas pessoas superem esses problemas, mas sim um grupo de incentivo à perda constante de peso, onde são partilhadas dicas para agravar esses problemas. São partilhados conselhos para reduzir o apetite, dietas com poucas calorias e até mesmo dicas para “afinar a cintura”.
Este conteúdo é muito perigoso e pode levar muitos jovens a contrair distúrbios alimentares como anorexia e bulimia, doenças crónicas. É absurdo que estes comportamentos sejam permitidos seja em que meio de comunicação for.
O 4chan é outra rede social em que não é necessário criar conta, O anonimato é garantido e não existem regras de utilização. Não há consequências nenhumas para os utilizadores. Então, também aparecem comunidades de partilha de ideias preconceituosas, supremacistas e mesmo nazis.
Durante muito tempo, a internet era considerada como uma “terra sem lei” por não existirem regulamentos e leis para as redes sociais.
As primeiras restrições nem foram criadas por legisladores, mas pelos publicitários. Os anúncios eram a principal fonte de receita das plataformas digitais. As maiores empresas têm o poder de decidir a que tipo de conteúdo querem estar associados e esse poder fez com que o conteúdo se tornasse family friendly, uma vez que exigiram que a sua marca não estivesse associada a conteúdo violento e de incentivo ao ódio.
Este movimento foi muito falado no Youtube quando a plataforma passou a desmonetizar muitos vídeos, após a pressão dos anunciantes que, inclusive, ameaçaram abandonar a plataforma se nada mudasse.
Recentemente, Elon Musk deu uma entrevista onde referiu que o X também foi alvo dessa tentativa de boicote por parte de grandes empresas, mas que continua intransigente nesse aspeto. Para ele, a liberdade de expressão no X não pode ser limitada por ninguém, pelos motivos já referidos.
É ilegal fazer discursos de apologia ao nazismo, todas as pessoas têm de seguir as leis do país onde residem e a regulação das redes sociais não se pode sobrepor à do país.
Em 2018, o inquérito Eurobarómetro apurou que 61% dos cidadãos da UE inquiridos já encontraram conteúdos ilegais na Internet e 65% não considera a utilização da Internet segura. Estas estatísticas são assustadoras e demonstraram existir graves problemas.
Não existia regulação europeia para as redes sociais até ao ano passado, a regulação que existia era apenas a nível nacional, em alguns países. A nível europeu existiam apenas algumas diretivas relativas a comércio eletrónico e direitos dos consumidores, mas ainda era necessário reforçar estas leis e complementá-las!
Por estes motivos, a União Europeia decidiu legislar as Redes Sociais. Em agosto de 2023 foi criada o Regulamento dos Serviços Digitais (RSD), aplicadas a 22 empresas “gigantes” do setor, entre elas Facebook; Instagram; TikTok; X; Apple; Microsoft; Google e Amazon. O RSD tem como principais objetivos proteger os direitos dos cidadãos (principalmente das crianças). Esta proteção passa por diminuir a exposição a mensagens de ódio, mas também para proteger os direitos do consumidor e o direito à privacidade, daí englobar empresas de ramos tão diferentes.
A Comissão Europeia anunciou que a 17 de fevereiro de 2024 o Regulamento dos Serviços Digitais (RSD) entrou em vigor para muitas mais empresas. Excluem-se apenas aquelas com menos de 50 funcionários e com receitas inferiores a 50 milhões de euros.
O RSD tem como missão diminuir a exposição a conteúdos ilegais. O pilar fundamental da decisão é que tudo que é ilegal "offline" também se tornará ilegal online.
Este Regulamento faz com que a responsabilidade esteja do lado das plataformas. As redes sociais, além de estarem obrigadas a disponibilizar ferramentas de denúncia de conteúdos (como já o faziam), passam a ter também a responsabilidade de agir rapidamente para os remover. As multas para este género de incumprimentos podem chegar aos 6% da faturação anual da empresa e, inclusive, podem ficar proibidas de operar no espaço europeu, em caso de repetitivas infrações.
As medidas parecem drásticas, mas eram necessárias, são empresas com dimensões astronómicas que pouco ou nada fariam com medidas mais brandas. Esta ideia era extremamente urgente e é até difícil perceber como é que demorou tanto a surgir e a ser implementada.
A principal preocupação é relativa à utilização de VPNs. Se estas normas são apenas aplicadas no espaço europeu como é que garantimos que um utilizador que resida na Europa não utilize sistemas para ocultar a sua localização e contornar estas barreiras? À partida, quando um conteúdo é removido por ser ilegal na UE, será removido da plataforma e não apenas ocultado dos utilizadores europeus. Além do mais o RSD inclui regras que não são exclusivas para o espaço europeu, como por exemplo a proteção dos dados pessoais e transparência dos algoritmos.
A Comissão Europeia fez os possíveis para que o Regulamento seja mais completo e proteja todos os consumidores destes serviços. A importância deste tema foi refletida no trabalho da Comissão.
Também a Google demonstra preocupação para combater as fake news. Decidiu doar 1,5 milhões de euros à Rede Europeia de Normas de Verificação de Factos (EFCSN) com o intuito de garantir que os anúncios e os sites que destaca não apresentam notícias falsas.
Concluindo, apesar de a liberdade de expressão ser um pilar fundamental da democracia, a sua aplicação irrestrita nos serviços digitais pode resultar em consequências prejudiciais, como a disseminação de desinformação e discursos de ódio. Muitos jovens com dificuldades para filtrar e analisar informação de forma crítica estão em fase de formação de opinião e são facilmente manipuláveis por estas pessoas mal-intencionadas.
Sempre ouvimos dizer que a nossa liberdade acaba quando começa a do outro, mas aparentemente essa ideia tem-se vindo a desvanecer. A implementação do Regulamento dos Serviços Digitais por parte da União Europeia representa um passo importante na direção para assegurar um ambiente online seguro, com o intuito de proteger os direitos dos utilizadores sem comprometer a liberdade de expressão legítima.
Promover um ambiente online mais seguro é crucial para evitar uma sociedade cada vez mais polarizada e potencialmente perigosa, onde o sentido crítico é muitas vezes superado pela pressão do grupo e pela manipulação de ideias extremistas.