Os Amigos da Abstenção

Os portugueses e o voto desde as primeiras eleições livres

ARTIGOPOLÍTICA

Diogo Mota

4/9/20227 min read

No dia 25 de abril de 1975, exatamente um ano após a histórica Revolução de 1974, realizavam-se as primeiras eleições livres e democráticas em Portugal, com o intuito de eleger 250 deputados para fundar uma Assembleia Constituinte, a fim de conceber uma nova Constituição, que entraria em vigor a 25 de abril de 1976. Neste dia, realizavam-se as primeiras eleições legislativas. Entre as eleições de 25 de abril de 1975 e as de 25 de abril de 1976, já se sentia a abstenção a tomar lugar. Apenas num ano, a abstenção já duplicava de 8% para 16%. Passados menos de 50 anos, já quase nos contentamos se 50% dos eleitores saírem de casa e assinalarem uma cruz. A pergunta que se impõe é a seguinte: o que leva as pessoas a desperdiçarem o direito de (ajudar a) determinar o futuro político, social e económico do país? O que levou 4,5 milhões de pessoas, a 30 de janeiro de 2022, a não votar na nova constituição da Assembleia da República? O que levou 6,5 milhões de pessoas, a 24 de janeiro de 2021, a não eleger o Presidente da República? O que levou quase 8 milhões de pessoas, a 26 de maio de 2019, a não escolher os 21 deputados portugueses com assento no Parlamento Europeu? A verdade é que são vários os amigos de abstenção, que afastam Portugal do boletim de voto.

Sistema de educação português

Na escola, ensinam-nos sobre a desmineralização da água e o processo de precipitação e aprendemos a caracterizar a morfologia dos fundos oceânicos e a relacionar a idade e o paleomagnetismo das rochas que os constituem com a distância ao eixo da dorsal médio-oceânica, mas pouco ficamos a saber sobre as diferentes ideologias políticas, as funções dos órgãos de soberania – Presidente da República, Assembleia da República, Governo e Tribunais, em Portugal –, entre muitos outros, tal é a falta de educação política que existe nas escolas portuguesas. Não existe qualquer disciplina obrigatória lecionada relacionada com política e sociedade, existe apenas uma disciplina optativa – Ciência Política –, lecionada exclusivamente no 12.º ano e que preliminarmente aborda certos temas relacionadas com a política atual. Efetivamente, torna-se difícil motivar os jovens, aos 18 anos, a sair do conforto de casa a um domingo para ir votar. Para a maioria, é o primeiro contacto com a política e é inevitável o desinteresse, dado que o interesse vem, entre muitos outros, com o conhecimento, conhecimento este que não existe. Apesar dos níveis altos de abstenção serem transversais aos vários grupos etários, são os jovens que mais se destacam pela baixa afluência às urnas. O não-contacto com a política na escola, não sendo exclusivamente português, não constitui a regra a nível europeu. A título de exemplo, na Alemanha, existe, consoante Estado, a disciplina de Politik (pt: política), Wissenschaftspolitik (pt: ciência política) ou Politik und Wirtschaft (pt: política e economia), sendo estas, na maioria dos casos, de frequência obrigatória para alunos dos 11.º e 12.º anos. A verdade é que, pegando no exemplo dado anteriormente, a diferença nos níveis de abstenção entre Portugal e a Alemanha faz-se notar. Nas últimas eleições legislativas, Portugal registou uma abstenção de aproximadamente 48% (2022), enquanto a Alemanha, nas suas mais recentes eleições federais, registou um número marcadamente inferior, nomeadamente 23% (2021). Já nas eleições europeias de 2019, 61% dos eleitores alemães dirigiram-se às urnas para eleger os seus representantes no Parlamento Europeu, enquanto a taxa de afluência de Portugal se ficou pela metade (cerca de 31%).

Envolvente familiar

Não encontrando na escola o motor necessário para incutir os valores políticos e de comunidade imprescindíveis a uma sociedade que se paute por princípios democráticos, também não parece ser no seio familiar que os mais novos encontrem a informação necessária. Quando pesquisamos por “regras para grupos de família” ou “temas a não abordar em grupos de família”, um dos pontos que nunca tarda em surgir é a política. Diz-se ser melhor evitar conversas relacionadas com a política para não causar conflitos desnecessários e prevenir que se firam suscetibilidades. Quem alega isto não deverá, contudo, saber que a discussão se destina a fomentar o conhecimento e tem ainda como fim a troca de diferentes pontos de vista.

Longevidade da constituição democrática

A Constituição da República Portuguesa, que entrou a vigor a 25 de abril de 1976, consagra, no seu artigo 10.º/1 (de acordo com a última revisão), que “[o] povo exerce o poder político através do sufrágio universal”, atribuindo este direito a “todos os cidadãos maiores de dezoito anos” (Art. 49.º/1, CRP). O aumento drástico da abstenção com a longevidade da democracia não se circunscreve a Portugal. Em Portugal, registava-se uma abstenção de 8% nas eleições de 1975 para a Assembleia Constituinte, valor este que ficou nos 48% nas mais recentes eleições legislativas. Pode ser perigoso culpar a constituição democrática que vigora em Portugal há quase 50 anos pelo alto nível de abstenção. A verdade é que quem nunca teve de lutar pela democracia e pelo sufrágio universal supracitado não sente o impulso de dirigir-se às urnas, a fim de manifestar a sua posição política. Já aqueles que não tinham o direito ao voto antes do 25 de abril, sentem na pele o que é ver alguns decidir o futuro de todos, cenário este que se repete – numa conjuntura política absolutamente discordante da ditadura – com as atuais taxas de abstenção.

Partidos políticos

Fazendo-o das mais variadas formas, os partidos políticos contribuem largamente para os níveis de abstenção com que nos deparamos em Portugal. Primeiramente, os candidatos políticos, que estão a representar os partidos (no caso de eleições legislativas, europeias e autárquicas) ou surgem apoiados por partidos (no caso de eleições presidenciais e autárquicas), parecem mais preocupados em denegrir a imagem do adversário do que em promover e debater possíveis propostas e ideias que possa ter. Mais uma vez, voltando ao exemplo dos jovens, estes que utilizam a internet como principal meio de informação e educação política, encontram resultados como “Dez razões para não votar no PS” (via Nós, Cidadãos) e “Três razões para não votar Marcelo [Rebelo de Sousa]” (via BE). Ao depararem-se com resultados como estes, efetivamente não podemos esperar que os jovens vão votar. Ironicamente, com a abstenção, os desejos do Nós, Cidadãos e do BE veem-se realizados, pois ficando em casa, os eleitores também não dão o seu voto ao PS e a Marcelo Rebelo de Sousa, respetivamente. Os partidos políticos contribuem ainda, em larga escala, para uma enorme dicotomia entre esquerda e direita na política portuguesa, que afeta não só a distribuição dos votos entre partidos – e candidatos singulares –, bem como a afluência às urnas. Observando o fenómeno das mais recentes eleições legislativas, havia mais debate à volta de possíveis coligações, que pudessem vir a formar governo, do que propriamente acerca de ideias. Ora quem até se identifica com um partido, mas não se revê nas coligações que esse partido possa vir a formar, tende a não ir votar, porque perde a “representação”. Em Portugal, quem se revê num espetro político mais ao centro, não encontra representação, já que a ideia de um bloco central parece ainda distante. Na Alemanha, governada durante largos anos por um bloco central composto pelos dois maiores partidos políticos do país – SPD (Partido Social-Democrata da Alemanha; centro-esquerda) e CDU (União Democrata-Cristã; centro-direita) –, conduz agora os destinos alemães uma coligação inédita, que abarca a SPD, o partido liberal alemão e os verdes.

Desinteresse da população

Efetivamente é fácil atribuir a culpa da alta taxa de abstenção a terceiros, sendo que nalguns casos, como verificado anteriormente, há legitimidade para o afirmar. Todavia, não há dúvida de que os melhores amigos da abstenção são os próprios abstencionistas. Hodiernamente, existem formas ilimitadas de obter conhecimento acerca dos mais diversos temas através das mais variadas fontes de informação. São inúmeras as justificações dadas por quem opta por não votar. Em primeiro lugar, temos o típico “não voto, porque os políticos são todos corruptos". Ignorando o facto de se tratar de uma falácia, nunca serviria de justificação para não votar, muito pelo contrário. A descrença nos políticos contemporâneos e/ou na atual configuração política de Portugal deveria levar os descontentes a tentar mudar o rumo do país, elegendo quem, a seu ver, defenderia os seus interesses da melhor forma. Também muito se ouve dizer “o meu voto não vai fazer a diferença”. Acontece que já vários resultados em diferentes eleições vêm contrariar esta informação, não sendo preciso recuar muito no tempo. Em 2021, nas eleições autárquicas, a CDU venceu a câmara de Évora ao PS por apenas 273 votos. Um exemplo ainda mais drástico remonta ainda a este ano: nas eleições legislativas de 2022, o PS conseguiu “roubar” um deputado ao PSD ao vencer o distrito de Bragança por 15 votos, sendo Bragança um distrito historicamente social-democrata.

A conclusão é que os “democratas” são os verdadeiros amigos da abstenção.

Os “democratas” podem procurar o indulto por não se dirigirem às urnas. Os “democratas” podem invocar todos e mais alguns motivos para não se dirigir às urnas. Os “democratas” podem não encontrar sentido nas eleições e decidir não se dirigir às urnas. Já os democratas encontram na abstenção o seu maior inimigo. Os democratas, que ativamente creem na democracia, olham para o direito ao voto como o espelho da democracia e o único modo de salvaguardar as instituições democráticas.

Este artigo representa exclusivamente a visão pessoal do seu autor.