Às voltas no abismo – a segunda volta (ou segundo turno) das eleições brasileiras.

Uma análise sobre o contexto político do Brasil e a polarização da sociedade brasileira em vésperas de eleições.

ARTIGOPOLÍTICA

Henrique Varino da Silva

10/28/20226 min read

Pode-se pensar, para quem está de fora, que o Brasil está à beira do precipício: entre a extrema-direita e a «extrema-esquerda». Nada mais erróneo: o Brasil já lá está há muito tempo. Uma economia resfriada há anos, instabilidade política em todos os níveis da federação, tensão entre poderes e um aumento exponencial do fosso social são o peso perfeito para a gravidade fazer o seu papel. As eleições são, apenas, a cereja do bolo.

Um pouco de história recente, antes de mais. A partir de 2013, com a subida dos passes de autocarro, eclodiu um movimento de rua espontâneo gigantesco por todo o Brasil. Apesar da espoleta ser o aumento das passagens, rapidamente as reivindicações escalaram de tal maneira que a Presidente da República (na altura, Dilma Rousseff) realizou um pronunciamento em rede nacional de televisão e rádio para apaziguar os ânimos – em vão.

Em 2014, um ataque sísmico a estrutura do país: a Operação Lava Jato. Tornou-se público, por meio do Ministério Público Federal, a existência de um esquema de corrupção complexíssimo, de meandros até hoje desconhecidos na sua integridade, e que envolviam empresas da construção civil e vários membros do sistema político, tendo por pivô estrutural a Petrobras, maior empresa do país. A série de providências jurídicas e de perseguições muitas vezes desmedidas e com pouco alicerce probatório, usando-se e abusando-se de meios cautelares preventivos de liberdade, desgastaram o sistema político (criando a ideia de que havia um sistema em que nenhum deles prestava) e agravaram ainda mais a frágil situação económica do país, que entrou de vez numa estagnação económica.

Com este cenário politicamente desfavorável e com a centralidade do partido de Dilma Rousseff no esquema descoberto pela Lava Jato (o PT, Partido dos Trabalhadores), uma manobra contábil da sua equipa económica no ano de 2015 foi o fundamento que faltava para o Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (outro envolvido na lava jato e condenado a pena de prisão, que ainda cumpre) desencadear, em 2016, um processo de impeachment, aprovado nas duas câmaras do Congresso brasileiro. O sentimento anti-petista era enorme nessa época não só devido a péssima gestão de Dilma, mas também pelos rescaldos e descobertas progressivas por parte da Operação Lava Jato, que veio como satisfazer os anseios populares de punição ao partido. Isto, pois, em 2012, no julgamento da Ação Penal 470 (o chamado caso do Mensalão, em que se apurou a existência de compra de votos no Congresso Nacional por parte do poder executivo, comandado na altura por Lula da Silva), muitos acusados acabaram por sair ilesos ou com penas muito diminuídas face a dimensão da corrupção apurada, o que conduziu a um sentimento generalizado de injustiça junto a população

Com a subida do governo Temer, mais a situação foi se agravando. Para além de uma gravação polémica entre uma conversa entre o ex-presidente e um empresário brasileiro em que aquele sugeria a este a compra do silêncio de Eduardo Cunha que fez soar os alarmes de um novo impeachment (que não ocorreu), a falta de crescimento da economia e a situação social piorando cada vez mais abriu a porta para um sentimento de antipolítica instalar-se em definitivo no país.

O culminar, porém, se deu em 2018, em que dois eventos delimitaram a política nacional: a prisão do ex-presidente Lula com a condenação de Sérgio Moro (anos depois declarada nula por incompetência do Tribunal e por parcialidade Moro – que, note-se, veio a integrar o Governo Bolsonaro, saído brigado, e voltado apoiando neste segundo turno) e ascensão virtual (que foi ignorada pelos media brasileiros até a primeira ronda das eleições presidenciais de 2018) e eleitoral do, até então, deputado “do baixo clero” Jair Bolsonaro como o verdadeiro antípoda do antipetismo, o que o levou a presidência com apoio de toda a direita e grande parte do centro político a altura, e ajudou a eleger a maior bancada congressista até então.

O que poderia ser um governo simples tornou-se um caos. O viés autoritário de Bolsonaro, amante confesso da ditadura militar que o país viveu por 20 anos, levou a uma constante fricção entre poderes (nomeadamente, com o judiciário, representado pelo Supremo Tribunal Federal), intromissões abusivas nos órgãos de investigação, enfrentamento e estímulo ao ódio aos media e uma constante criação de conflitos com os até então aliados no Congresso Nacional. A isto tudo, ainda se assomaram as constantes suspeitas de corrupção por parte dos membros de sua família (dos 5 filhos de Bolsonaro, 3 são políticos) e do próprio; a descoberta do esquema de compra indireta de votos (o chamado “Orçamento Secreto”) e a gestão verdadeiramente caótica e absurda da pandemia de COVID-19 por parte do Governo, cujos detalhes sórdidos foram sendo descobertos pelo Congresso Nacional na Comissão Parlamentar de Inquérito relativa a pandemia. Neste interregno, com a anulação da condenação de Lula, o ex-presidente volta a vida em liberdade com uma postura de mártir da nação, como se nenhum dos grande escândalos de corrupção encabeçados ou que, pelo menos, envolviam o PT tivessem alguma vez ocorrido.

Feito este enquadramento, que, acredite-se, é superficial, podemos analisar com mais calma estas eleições.

Em primeiro lugar, e tendo em conta os resultados da primeira volta, pode-se dizer com tranquilidade que está é a eleição dos extremos, direita e esquerda, e que a polarização entre esses extremos veio para ficar (a terceira via foi completamente estraçalhada no pleito). O fenómeno não é novo: durante anos, o PT incentivou a dinâmica do nós contra eles, que somente foi aprimorada e levada ao seu extremo pelo bolsonarismo através dos chats de WhatsApp e que já trouxe vítimas mortais (não esquecer do caso em que um apoiante de Bolsonaro matou a tiros um apoiante de Lula da Silva em plena comemoração de aniversário). Portanto, a ideia de que o PT e sua militância são “paz e amor” é falaciosa e só engana quem não conhece, não se lembra ou quer não se lembrar do passado; mas, sem dúvidas, o lado oposto se mostrou mais violento e agressivo.

Em segundo lugar, mais do que nunca, esta eleição é a eleição da desinformação. A proliferação de notícias falsas ou imprecisas sempre foram uma realidade nas eleições brasileiras (lembre-se os boatos Carlos Lacerda vs Getúlio Vargas, que pipocavam na década de 1950 nos media…), mas com a consolidação das redes sociais como meio primordial de comunicação política (e onde o contraponto é inexistente graças aos algoritmos dessas plataformas), o fenómeno só se arregimentou e ganhou base para que desinformação fosse usada como principal linha de comunicação de ambas as campanhas.

Em terceiro lugar, e talvez o mais importante, esta é a eleição da rejeição. Alguém certa vez disse que o “amor até constrói, mas é o ódio que transforma”, e nada mais parece ir ao encontro deste pensamento que o Brasil atual. Ambos os candidatos tem, arredondando, 50% de rejeição, pelo que a eleição, no rigor dos termos, não será resolvida por aquele que reúne mais simpatia, mas antes por aquele que reunir contra si a menor percentagem de ódio. E, claro, é irrelevante o projeto apresentado, desde que o outro esteja fora dos controles do destino do país.

O cenário, portanto, é aterrador e um autêntico beco sem saída, em que não se dirige ao abismo, mas sê dá voltas em suas bordas para, inevitavelmente, cair no seu vazio. Por pelo menos quatro anos, não haverá futuro real, pois não há dos dois lados qualquer projeto verdadeiramente edificado do que será o Brasil. Há, apenas, combate contra o lado oposto do voto, e assim continuará a ser sabe-se lá quanto tempo mais.

Meu único conselho a todos os brasileiros que lá continuam, mais de 200 milhões, infelizmente, não poderia deixar de ser o seguinte: ao último que de lá sair, apague a luz.

Enquanto a cultura democrática não for refundida, o sistema jurídico e judicial reerguido e organizado e o sistema educativo levado a sério, nada de bom sairá do país para além de brasileiros capazes, mas cansados do que lá ocorre.

Isso, no entanto, só poderá, com sorte, voltar a ser uma possibilidade, quando existirem propostas sobre a mesa. Daqui a 4 anos. Espera-se.

Artigo por Autor Convidado - Henrique Varino da Silva