Pequenos passos no “Far-Leste"

Uma Crónica do Interior do País

ARTIGO

João Sampaio Costa

5/31/20234 min read

Continuando a saga de conferências peculiares, a aula inaugural deste semestre foi com o Primeiro-Ministro[1] António Costa. Onde depois de vinte minutos de falar sobre a importância do Interior Português no âmbito da integração europeia (nomeadamente o seu caráter excecional [para a negativa[2]]), anunciou entusiasticamente uma linha férrea Lisboa-Vigo[3]!

No entanto, uma das bandeiras deste Governo Constitucional é a descentralização. E isso já soa aos ouvidos dos serranos, apesar das controvérsias e complicações no reforçar dos poderes, competências e tutelas, dos municípios[4]. E apesar de eu preferir uma garantia constitucional (em vez de promessas políticas) para efetivar esta descentralização… apenas se o Artigo 81.º, d), in fine, da Constituição da República Portuguesa existisse[5]. Oxalá o Tribunal Constitucional tivesse sido arrastado ao “Interior” que é Coimbra, mas nem isso se concretizou.

Portanto, sinto que há uma abismal ausência de representação, conhecimento e ação sobre, no e pelo Interior. Desde a criminalidade à habitação. Façam reabilitação da leve criminalidade como os noruegueses, com um twist português claro, numa quinta comunal[6]. Acredito fortemente na reabilitação através das mãos na terra, barro e madeira. É difícil explicar a euforia e simplicidade de fazer um pequeno forno de pizza à mão ao fim de umas semanas ou colher fruta de árvores que plantei em miúdo. Quanto à habitação, a quantidade absurda de casas, ruínas e outras coisas perdidas ao tempo aqui é incontável. A renda média por um apartamento com 125m2 na Guarda ronda os 250-350€[7]. Mais! 79% das casas à venda no distrito dispõem de mais de 100m2…[8]_[9] E inacreditavelmente? Há uma forte necessidade de pessoas na região, mas tudo o que ouço é a secretária de Estado da Habitação dizer que todos têm o Direito de viver em Lisboa[10]… enfim, será sana a observação que tudo o que estou a dizer é um divagar romântico e idealístico, por isso vamos voltar ao tema do texto.

Então porque é que houve pequenos passos no “Far-Leste”? Porque quando se estava a escolher a localização do “futuro” Tribunal Central Administrativo do Centro[11], em vez de se escolher Coimbra, decidiu-se em Castelo Branco (ou assim aparenta, veremos). E apesar de parecer apenas ser um ponto no mapa ligeiramente mais distante, faz muita diferença. E aqui vou explorar o que para mim é uma das grandes ideias políticas para o Interior.

A progressiva descentralização, por mandato constitucional, de instituições públicas para o Interior. Porquê? Seguindo dois fundamentos, pessoas geram capital e pessoas são atraídas a esse capital. Dois fundamentos de mercado, portanto, geridos pela vontade e circunstâncias individuais, assim por dizer. Não podemos forçar Lisboetas a ir à Guarda, se não for da sua vontade. Salvo ir à Serra da Estrela para tirar umas fotos.

Existe apenas uma coisa[12] que podemos fazer com uns zás da caneta administrativa. Mover Instituições Públicas e Poder Político adentro, porque isso não é uma força da vontade e de mercado em si. É uma opção Política que gera esse tipo de consequências que pretendemos (mover pessoas e capital para o Interior).

Ou seja, da próxima vez que ouvirmos falar em revitalizar ou rejuvenescer o Interior, lembremo-nos de que enquanto o poder decisório estiver longe das pessoas afetadas, nada é efetivamente feito. Exemplo final disto é também a conferência referida no início do texto, onde o Primeiro-Ministro refere as linhas Férreas. A Linha Férrea do Douro[13] está desativada no troço além do Pocinho, apesar de pretensões para a reativar[14]. No Natal passado caminhei sobre essa linha, colhi umas flores e respirei o fresco do Alto Douro. No entanto, há mais pasto e veados do que locomotivas à vista[15].

É tudo por agora. Tenho de botar a boina e calças lamacentas, tratar das vacas, caçar uns javalis e ir a Espanha comprar Presunto depois da tourada… ah! Com “Sangue Oculto” dos GNR a tocar de fundo[16].


[1] https://www.porto.ucp.pt/central-eventos/aula-inaugural-semestre-com-primeiro-ministro-antonio-costa.

[2] O ponto que o PM trouxe é: em toda a europa, as zonas transfronteiriças são das mais desenvolvidas, têm mais centros económicos e populacionais, devido à integração económica europeia. Só existe uma exceção. A Raya/Raia/Interior. Na parte que faz fronteira com Espanha.

[3] https://www.rtp.pt/noticias/economia/linha-de-tgv-lisboa-porto-vigo-vem-unir-o-pais-e-reforcar-a-fachada-atlantica_n1436027.

[4] https://transparencia.gov.pt/pt/municipios/indicadores-por-municipio/descentralizacao-de-competencias/

[5] (Incumbências prioritárias do Estado), Artigo 81.º, d), in fine, diz “Promover a coesão económica e social de todo o território nacional, orientando o desenvolvimento no sentido de um crescimento equilibrado de todos os sectores e regiões e eliminando progressivamente as diferenças económicas e sociais entre a cidade e o campo e entre o litoral e o interior;” (negrito meu).

[6] https://en.wikipedia.org/wiki/Freetown_Christiania, é o exemplo clássico, embora provavelmente mais próximo do que penso seria algo nas linhas do Anarquista Ucraniano Nestor Makhno, https://en.wikipedia.org/wiki/Nestor_Makhno.

[7] https://www.jornaldenegocios.pt/economia/habitacao/rendas/detalhe/mapa-qual-a-renda-media-no-seu-concelho.

[8] https://www.dinheirovivo.pt/economia/nacional/metade-das-casas-a-venda-em-portugal-tem-mais-de-100-metros-quadrados-15177441.html.

[9] https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_publicacoes&PUBLICACOESpub_boui=27968707&PUBLICACOESmodo=2, páginas 56 e seguintes, pontos 3.5 e seguintes do relatório.

[10] https://eco.sapo.pt/2022/09/07/toda-a-gente-tem-direito-a-viver-nas-zonas-mais-caras-de-lisboa-diz-secretaria-de-estado/.

[11] https://observador.pt/2022/05/04/criacao-de-novo-tribunal-central-administrativo-no-centro-e-questao-a-ponderar-admite-ministra/ e https://www.gazetadointerior.pt/noticias/ano-2023/1777-01-25/castelo-branco/cidade-pode-acolher-um-novo-tribunal-administrativo.aspx.

[12] Falso dilema ou enviesamento? Em sentido técnico, sim! Mas conformo-me, dado o escopo do texto ser sobre a descentralização. Há mais possibilidades e quem sabe, amanhã é outro dia/texto.

[13] https://pt.wikipedia.org/wiki/Linha_do_Douro.

[14] https://eco.sapo.pt/2022/10/03/ministro-das-infraestruturas-quer-reativar-linha-do-douro-ate-a-fronteira/.

[15] https://imgur.com/a/TCof96B, fotografia que apenas apanha os caminhos de ferro, perto do Pocinho, os veados foram mais perto de Barca de Alva.

[16] O arquétipo do Retrógrado Raiano, na minha opinião, visto pelo português médio do Litoral, https://dicionario.priberam.org/raiano e https://www.youtube.com/watch?v=BN9Q1sPI2y0&ab_channel=OficinadaIlus%C3%A3o (link para o videoclip da música).