Querido, Mudei o Hemiciclo

Dramas e dilemas sobre o novo Parlamento

ARTIGOPOLÍTICA

Carlos Eduardo Costa

3/14/20225 min read

Todos nós nos recordamos do mítico programa de televisão “Querido, Mudei a Casa”, em que uma equipa de construção, coordenada por um ou dois designers de interiores, deslocava-se a casa de uma pessoa ou uma família, que habitualmente tinha uma história de vida trágica ou de superação, e renovaram uma divisão específica dessa habitação. Ora, por estes dias tem-se gerado um debate na agenda política nacional sobre a disposição e composição da divisão de um imóvel muito específico, com áreas agradáveis e bons acessos, localizado em Lisboa, que se chama Assembleia da República.

Façamos, então, a prequela: na “semi-legislatura” 2019-2022, o Parlamento viu entrar três novas forças partidárias, que gerou um problema: em que posição do hemiciclo sentamos os deputados dos novos partidos (leia-se, Livre, IL e Chega)? Na altura, a conferência de líderes decidiu sentar o Chega na posição mais à direita do Parlamento – destruindo, pela primeira vez, a histórica lógica de que “à direita do CDS apenas se encontrará uma parede” –, o Livre entre o PS e o PCP, ou seja, completamente enquadrado com o seu posicionamento político-ideológico, e a IL entre o PSD e o CDS. Ora, destes três, apenas a última gerou discórdia e protesto do próprio partido, e, de certa forma, com razão: se olharmos para a composição dos diversos parlamentos pela Europa – e até mesmo para o Parlamento Europeu –, os liberais situam-se sempre ao centro, uma vez que a ideologia liberal não encaixa no típico eixo esquerda-direita. Contudo, este descontentamento, que foi expresso de forma veemente por João Cotrim Figueiredo, em 2019, envolvendo até um pedido para mudar de lugar no hemiciclo, não foi adiante, uma vez que os demais partidos não aceitaram – tendo sido, na altura, mas de forma muito leviana, levantado um debate sobre se os três novos partidos deveriam ter ou não direito a participar da conferência de líderes, algo que ficou “em águas de bacalhau”, com a alegação de que eram partidos que estavam representados por um deputado único. 

Em 2022, e depois de umas eleições legislativas antecipadas que permitiram a eleição de 8 deputados liberais e, consequentemente, a formação de um grupo parlamentar, a IL voltou a reivindicar o seu lugar no centro do hemiciclo; contudo, e ao contrário do que sucedeu em 2019, esta pretensão gerou um debate aceso, quer dentro do próprio partido liderado por João Cotrim Figueiredo, quer no espaço público, com algumas afirmações inflamadas de Rui Rio – o que é de estranhar, visto que ele próprio está de saída. Mas vamos, então, por partes.

A definição de liberalismo é certamente, e ao mesmo tempo, a mais complexa e a mais simples que existe em política. Mas, de uma forma simples, podemos afirmar com segurança que a IL se situa mais à direita em termos económicos e, ao nível de costumes, acompanha as ideias da esquerda progressista – defende os direitos LGBT, é a favor da despenalização da eutanásia, entre outros. Isto faz com que, conforme já o mencionei anteriormente, os partidos liberais se situem ao centro nos diversos hemiciclos europeus e que os coloca em posições como, por exemplo, na Alemanha, em que o FDP se coligou com o SPD – que se situa, no Bundestag, à esquerda não só dos liberais como também dos Verdes, o outro partido que faz parte da “coligação semáforo” alemã. Porém, há aqui desde logo uma questão que devemos logo ressalvar: os partidos portugueses têm, há muito tempo, um problema de nomenclatura. O Partido Socialista é social-democrata, daí a filiação europeia ser essa, ao passo que o PSD é de centro-direita, apesar de se chamar “Partido Social-Democrata”. E isto tudo daria para imensa discussão e debate, mas devemos nos focar no essencial.

Dentro da própria Iniciativa Liberal, se em 2019 era pacífica a posição em causa, há hoje uma discussão profunda sobre o tema, discussão essa que se compreende, pois pende para uma das bandeiras do partido: o liberalismo económico. É verdade que, de 2019 para cá, os liberais captaram muitos votos de partidos do centro-direita e da direita clássica, como o PSD ou o CDS, por conta do discurso sobre o liberalismo económico, que foi sendo defendido a tempos por diversas lideranças de ambos os partidos e, no caso do CDS, era uma das ideologias que este partido agregava até à existência do partido fundado em 2017. E é igualmente inegável que, na campanha eleitoral para as legislativas de 2022, a questão do liberalismo económico – que pende, claro está, para a direita – foi o tema capital defendido por João Cotrim Figueiredo em todas as oportunidades que teve “para demonstrar que o liberalismo funciona e faz falta a Portugal”: a liberdade de escolha na saúde e na educação, a redução da carga fiscal e da burocracia, entre outros; contudo, esta aposta deveu-se, por um lado, ao facto de estes serem, na opinião de muitos portugueses fartos de ver o país e uma economia estagnada, bem como de maioria dos dirigentes, membros e apoiantes da IL, os temas mais fracturantes para a situação atual, mas, por outro lado, nas afamadas 600 páginas de programa, os liberais vincaram não só o seu posicionamento liberal na economia, mas também a nível de costumes e modelo de sociedade. Ou seja, era inatacável, à partida, o posicionamento de “liberais em toda a linha” defendido pela atual 4ª força política em Portugal, pelo que ninguém poderá alegar que o seu voto foi “ao engano”. 

Contudo, de PSD e CDS não vieram apenas votos, vieram também militantes, e muitos desses militantes são aqueles que hoje, por de facto darem mais valor ao liberalismo económico, defendem que o posicionamento da IL tem que ser à direita do atual PSD de Rui Rio, que se afirma como sendo de centro ou até por vezes de centro-esquerda.

Tendo isto em conta, fica feita uma ponte bem preguiçosa para ligar às afirmações de Rui Rio, que vem à praça pública dizer que é ultrajante que a IL esteja ao centro e à esquerda do PSD tendo em conta o seu posicionamento económico. E eu confesso que concordaria com Rui Rio – que só dizer isto dá-me urticárias – se o espetro político apenas se cingisse à economia. Como não é assim, cabe-me recorrer às palavras de Luís Aguiar-Conraria na rede social Twitter: “O PSD opôs-se ao aborto, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, à coadoção, à legalização de drogas leves, etc.. Se ficar encostadinho ao Chega, fica muito bem.”. E com esta afirmação não só se dará razão ao argumento da Iniciativa Liberal, como também fica definido o ponto capital em relação à problemática da posição no hemiciclo: ao contrário do que sucedeu em 2019, não existe, na nova composição da AR, um partido chamado CDS, que servia para separar aqueles que respeitam e querem respeitar as regras atuais do sistema democrático daqueles que ainda não sabem comer à mesa e usar os talheres e que ninguém quer ficar sentado ao lado deles.

É verdade que as opiniões em relação ao eixo esquerda-direita podem ser muito diversas, que eu posso tender a concordar com ambas: acho-o, por um lado, redutor, mas, por outro, sinto que ele serve para enquadrar politicamente, na generalidade, muita gente. 

Agora há uma opinião que sou completamente intransigente: em qualquer que seja o lugar do hemiciclo, tanto IL como PSD devem defender as suas próprias ideias e, principalmente, fazer uma oposição agressiva, mas sempre construtiva, a uma maioria absoluta do Partido Socialista, para que, tendo em conta os interesses de ambos os partidos, o resultado eleitoral daqui a 4 anos seja completamente diferente.

Este artigo representa exclusivamente a visão pessoal do seu autor.