Conciliação Interrompida

3/25/2025

Sara Oliveira

No dia 18 de março estaria agendado um encontro, mediado por Angola, entre Félix Tshisekedi, atual presidente da República Democrática do Congo (RDC), Paul Kagame, atual presidente do Ruanda, e representantes do Movimento 23 de março (M23). Esta reunião tinha potencial para ser um avanço bastante positivo para a conciliação entre as partes envolvidas do conflito atual no território do Congo e para a construção de um futuro mais coeso e harmonioso.

Antes de analisar o conflito em mãos, parece-me relevante dar uma pequena contextualização histórica da RDC.

A antiga colónia sob o domínio belga alcançou independência em 1960, sendo que as primeiras eleições se sucederam 5 anos depois. O ano de 1994 foi marcado pelo trágico massacre em Ruanda, país fronteiriço e com protagonismo no contexto atual na RDC. Explicando de forma extremamente simplista, em julho de 1994 elementos extremistas da maioria populacional Hutus propagaram as suas intenções de eliminar o maior número possível da minoria Tutsis. Neste sentido, uma considerável porção de ruandeses procurou asilo no estado vizinho, sendo que grande parte pertencia ao grupo étnico Hutus. Esta imigração em massa de Hutus, gerou um generalizado sentido de revolta na população tutsi dessa zona, o que despoletou desconcerto com a aparente tolerância do Presidente da RDC, Mobutu Sese Seko. Deste modo, em 1997 Laurent-Désiré Kabila, líder da força rebelde, chegou ao poder.

O regime de Kabila, por sua vez, foi pautado pelo seu cariz autoritário e pelo tumulto. Contou com a quebra de relações internacionais com Ruanda e Uganda, tendo sido em 1998 despoletada a Segunda Guerra do Congo. Durante o conflito verificaram-se indescritíveis atos de violência e milhões de perdas humanas. Porém em 2001, Kabila foi assassinado, tendo o seu filho, Joseph Kabila, assumido o poder. O processo de paz foi finalmente iniciado e em 2006 foram realizadas eleições.

Apesar de muito breve e com lacunas, a contextualização histórica apresentada não poderia ser dispensada para entender a complexidade política, histórica e social do conflito contemporâneo na RDC.

Retomando aos acontecimentos de dia 18, há muito que se diga. Como se diz popularmente quanto mais se planeia, menos as coisas se desenvolvem de acordo. Todo o plano caiu por terra. Primeiramente, o M23 anunciou que não iria estar presente, acusando a União Europeia (UE) de querer corromper as tentativas de conciliação pela imposição de sanções. Segundamente, Luanda deixou de ser o palco para esta reunião. O emir do Qatar Tamim bin Hamad surpreendeu quando anunciou que teria conseguido chegar a um acordo de cessar-fogo imediato entre a RDC e o Ruanda, resultante do um encontro marcado pela sua própria iniciativa e pela ausência do presidente angolano, João Lourenço, mediador designado para o conflito desde 2022.

A RDC está numa posição pouco invejável. As forças do M23 que atuam como uma frente rebelde discordante do governo congolês, segundo o relatório da ONU, não só são apoiadas pelo governo ruandês, mas, além disso, soldados das Forças Ruandesas de Defesa intervêm ativamente nos conflitos.

Na verdade, Félix Tshisekedi acusa o M23 de ganhar o controlo de locais estratégicos, como regiões ricas em recursos naturais. Deste modo, devido à reduzida região geográfica do Ruanda em comparação com a venda e exportação de recursos naturais, é apontado que grande parte desses materiais são explorados na RDC e enviados para o Ruanda. Por esta razão, a disposição demonstrada por Tshisekedi para aceitar a presença de representantes do M23 nas negociações foi um passo positivo para a continuação de uma conciliação. Porém, como referido anteriormente, a intervenção oca da UE prejudicou esta expectativa.

Na verdade, em janeiro de 2024, a UE celebrou um acordo com o Ruanda para promover a cooperação na exploração sustentável de recursos naturais. Este acordo pode ser visto como uma aprovação, ou no mínimo apoio, à prática corrente do governo ruandês, tendo naturalmente Tshisekedi demonstrado o seu desagrado na realização desta “parceria”. Contudo, um dia antes das negociações, a UE anunciou que iria implementar sanções a indivíduos e a uma entidade diretamente relacionados com o M23, o que motivou a sua ausência na reunião.

Também, é de relevante menção que a intervenção do emir, que empurrou a participação da Angola para plano secundário, apesar do acordo alcançado, causou alguns efeitos nefastos que terão de ser resolvidos a longo prazo. O presidente João Lourenço viu-se incrivelmente descredibilizado, por este “encontro surpresa”, o que, sendo o mediador designado oficial, retira-lhe considerável autonomia e credibilidade.

Em geral, todo este evento foi marcado pelo caos e uma notável falta de harmonia entre organizações internacionais e chefes de estado. Vivemos em tempos em que a ordem internacional está diariamente a ser contrariada e desrespeitada. A UE, mais que nunca, tem de assentar os pés na terra e mudar a sua postura. A hipocrisia eurocêntrica é um truque de festa que já está há muito ultrapassado. Os chefes de estado têm como primeiro interesse o do seu país, naturalmente, mas a responsabilidade para com a ordem internacional e cooperação para contextos pacíficos é igualmente importante. A intervenção do emir, poderá retirar efeitos positivos a nível económico e a curto prazo humanitariamente, mas poderá ter dificultado as futuras negociações e o papel da Angola como mediador.

Os conflitos foram e são parte da dinâmica mundial. O objetivo de paz mundial parece um conceito, infelizmente, absolutamente irrealista. Desta forma, a cooperação para a sua atenuação e resolução é imperativo e imprescindível. No meio de contratos económicos e sonhos de desenvolvimento sustentável, não poderá ser esquecido o peso humanitário dos conflitos e a prioridade que comportam.