Dawkins e Peterson na Torre de Babel
“The single biggest problem in communication is the illusion that it has taken place.” — George Bernard Shaw.
POLÍTICAARTIGO
Richard Dawkins nasceu em Nairóbi, Quénia, ainda durante a ocupação inglesa. Filho de ingleses lá radicados.
Formado pela Universidade de Oxford em biologia—onde, posteriormente, assumiu posições de destaque como professor—, Dawkins não atingiu a fama pela sua brilhante carreira na Academia, no campo da Biologia, mas através da sua militância ateia, na onda de figuras como Christopher Hitchens.
Dawkins viajou o mundo—e, aos 83 anos, continua a viajar—pregando o ateísmo e a ideia de que a Religião é um dos grandes males da Humanidade. Em palestras, para os quais os ingressos esgotam do dia para noite, com um humor ácido, tipicamente britânico, ridiculariza quem crê em Deus e vende (principalmente, para ateus) livros que buscam convencer os leitores do quão ridículo e inadequado ao século XXI é ser religioso. Busca consolidar ideias como a de que Religião e Ciência são incompatíveis.
É uma das melhores concretizações da expressão anglófona, “to preach to the choir”. Para os não versados na língua inglesa (shame on you), a expressão significa tentar convencer alguém de algo com o qual ela já concorda.
Jordan Peterson nasceu no Canadá, onde obteve a sua formação em psicologia, pela Universidade de Alberta e pela Universidade McGill, onde lecionou, tendo, depois, passado boa parte da década de 90 como professor em Harvard.
Atingiu a fama em 2016, com ideias consideradas polémicas, pelo mainstream public, sobre cultura, política e, principalmente, género (temas que um segmento da população chama de ideologia de género e que são estudados, por outro segmento da população, numa recente área académica chamada gender studies). É um dos principais expoentes daqueles que criticam o chamado “marxismo cultural[1]” (se alguém souber explicar, de forma precisa e rigorosa, este conceito, por favor, que me avise). Assim como Dawkins, Peterson vive de assuntos que costumam estragar jantares em família.
Com o seu jeito peculiar de falar, de forma rápida, mas com grandes pausas, durante as quais fecha os olhos e gesticula, como se estivesse tentando procurar a palavra certa numa gaveta desarrumada cheia de papéis, Peterson tem mais de 8 milhões e 300 mil inscritos no seu canal no YouTube e 5,6 milhões de seguidores no X (antigo Twitter).
Por coincidência, vocação, ou ambos, o público de Peterson é maioritariamente composto por homens jovens que encontram na sua fala algum conforto, algum abrigo, num mundo que, por vezes, parece oferecer abrigo e conforto para todos, exceto eles.
No dia 21 de outubro, foi publicado um debate entre ambos no canal do YouTube de Peterson. Moderado por Alex O’Connor, o debate tem 1 hora e 32 minutos de duração e, em uma semana, atingiu 1 milhão de visualizações e mais de 15 mil comentários.
“E o conteúdo do debate?”, você me pergunta. Memes (conceito criado por Dawkins, em O Gene Egoísta), arquétipos (no sentido junguiano clássico) e dragões. Sim. Ambos passaram aproximadamente 10 minutos refletindo sobre o conceito de “dragão”.
O que chama atenção no debate é a enorme dificuldade em estabelecer comunicação. O’Connor, o moderador, fez um excelente e hercúleo trabalho, tentando traduzir a fala—e perguntas—de um para o outro. Apesar disso, em 1 hora e 32 minutos, foram poucos os momentos nos quais houve verdadeira troca, um verdadeiro diálogo. Estamos acostumados a ver debates em que não há diálogo (e.g., todos os debates políticos nacionais e internacionais das últimas décadas). A diferença, e algo que tornou este tão interessante, é que, aqui, temos duas pessoas altamente letradas, inquestionavelmente inteligentes (o quão honestas são é outra questão), que não estavam disputando um cargo público e não tinham a necessidade que os políticos têm de “ganhar” o debate. Mesmo assim, foram incapazes de estabelecer diálogo entre si.
Logo no início, Dawkins pergunta se Peterson realmente acreditava nas histórias da Bíblia. Antes, é preciso dizer que nos últimos anos, Peterson vem se transformando num guru para os conservadores religiosos—principalmente, para os mais jovens. “Drunk on symbols”, como acusa Dawkins, o psicólogo canadiano utiliza as histórias bíblicas como exemplos de arquétipos perfeitos dos quais extrai lições de vida. Mas, afinal, será que ele realmente acredita nas histórias? Após assistir 92 minutos de debate, eu ainda não sei.
Jordan afirmava que acreditava que as histórias eram, como já mencionei, arquétipos perfeitos, que retratam características essencialmente humanas. No caso de Caim e Abel, por exemplo, vemos a inveja clássica entre irmãos. Nada disso responde à pergunta de Dawkins. “Sim, mas você acredita que estas coisas aconteceram?”. Peterson, finalmente, responde que não acha relevante se as histórias correspondem, ou não, a factos históricos e materiais, ainda sem responder à pergunta, mas evidenciando uma questão interessante.
Dawkins é um biólogo, um materialista. Em determinado momento, diz até, “I like reality”. Peterson se interessa por símbolos. Para ele, os símbolos de uma história e as representações de características humanas—estas sim, inquestionavelmente reais—é o mais importante. Não me parece que um tenha mais apreço pela realidade do que o outro. Estamos perante um problema linguístico. Mais do que uma discordância substantiva, há um problema de comunicação.
Peterson tem uma fala insuportavelmente verborrágica, com uma cadência estranha e com uso de vocabulário excessivamente complexo, que não ajuda em nada a exteriorização das suas ideias, mas, pelo menos, faz com que elas pareçam muito profundas e complexas. Permitam-me, agora, cometer o mesmo pecado do qual ele, muitas vezes, é culpado.
Para resolvermos a confusão linguística do debate, é importante entendermos que “realidade” é uma palavra mais polissêmica do que parece, como é o caso da maioria das palavras. O que Peterson quer dizer com “real” é o facto de algo corresponder—no caso, histórias bíblicas—a questões reais. Os humanos são invejosos, altruístas, pretensiosos, preguiçosos e muitos outros adjetivos que se contradizem. Assim, uma história que retrata uma, ou mais, destas faces humanas é real.
Além disso, Peterson fala de uma história ser real dentro da sua narrativa. A narrativa do Novo Testamento, por exemplo, só faz sentido se Jesus for, de facto, filho de Deus e, simultaneamente, Deus e se a sua mãe for virgem. Assim, dentro desta história, ou seja, para que ela funcione enquanto história e enquanto arquétipo, nós precisamos aceitar estes factos. Seria como ler a história de Sísifo e dizer, “como Zeus se transformou numa águia? Isso não faz sentido! Ninguém seria capaz de se transformar numa águia!”.
Imagino que o interesse de Peterson pelas histórias bíblicas pode ser, em parte, explicado e bem representado por aquilo que Joan Didion escreveu em The White Album:
We tell ourselves stories in order to live. The princess is caged in the consulate. A man with the candy will lead the children into the sea. We look for sermon in the suicide, for the social or moral lesson in the murder of five. (…) We live entirely (…) by the imposition of a narrative line upon disparate images, by the ‘ideas’ with which we have learned to freeze the shifting phantasmagoria which is our actual experience.[2]
Apesar de esta concepção de realidade fazer sentido, é claro que quando utilizamos a palavra no dia-a-dia, queremos dizer outra coisa. Algo “real” ou “verdadeiro” é algo que aconteceu, ou existe fisicamente. É isso que Dawkins quer dizer quando afirma que determinada história é falsa. “Verdade é o que nos levou à Lua”, diz o biólogo, deixando claro o que ele quer dizer com as suas perguntas e afirmações.
É difícil imaginar que Peterson, de facto, não tenha entendido a pergunta reiterada de Dawkins. Talvez, por algum motivo, tenha algum receio de admitir que acredita na materialidade das histórias bíblicas, ou que não acredita nas histórias e lê a Bíblia como se lê Crime e Castigo ou mitologia grega.
O debate foi menos um debate convencional (foi realizado sem público ou tempo cronometrado para réplicas e tréplicas) e mais uma conversa, embora moderada. Sempre detestei o ímpeto de alguns, ao final de um debate, de determinar uma das partes como “vencedora”. Neste caso, porém, é óbvio quem ganhou o debate. O vencedor foi Alex O’Connor, o moderador. Foi o único que, claramente, entendeu na totalidade o que foi dito por ambos os debatedores.
Porto, 2024.
Daniel Sister.
[1] Para uma tentativa de entender o que Peterson quer dizer exatamente com esta expressão, assista o debate de 2019 entre Peterson e Žižek. Žižek “lava a alma” de muitos (eu, evidentemente, me incluo nos “muitos”) ao expor o quão ridícula é a noção. Mais estúpido do que a ideia de “marxismo cultural”, em si, é achar que há algum tipo de “marxismo” no “marxismo cultural”.
[2] DIDION, J. (2017) ‘The White Album’, in The White Album. London: 4th Estate, p. 11.