Freedom of Xpression
O fim das atividades da rede social X (antigo Twitter) no Brasil deixa várias questões sobre a liberdade de expressão. Acompanha algumas destas neste artigo.
Daniel Sister
9/22/20245 min read
Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil, no dia 30 de agosto, após uma batalha judicial e pessoal com Elon Musk, decretou o fim das atividades da rede social X (antigo Twitter) no Brasil.
Pela internet, há uma vasta gama de opiniões fortes de especialistas e leigos que se consideram especialistas. Em geral, os que se identificam com a Direita se posicionam contra a decisão do ministro e a categorizam como autoritária. Esta repentina preocupação com os Direitos Fundamentais, vinda desta parte do espectro político, é um fenómeno profundamente irónico, sendo estes indivíduos, na sua maioria, apoiadores do ex-Presidente Bolsonaro, conhecido pelo seu discurso autoritário e nostalgia pelo período da Ditadura Militar (1964-1985). Já os que se identificam com a Esquerda se posicionam a favor da decisão do ministro e ressaltam a soberania do Brasil. Esses ainda afirmam, categoricamente, que potências estrangeiras e a iniciativa privada precisam respeitar e se conformar com a legislação brasileira, se decidirem operar no Brasil.
Escrevo este texto, para um departamento de artigos de opinião, para dizer que não tenho uma opinião tão forte e inequívoca quanto a maioria. O meu problema é ser incapaz de concordar inteiramente com a “direita” ou com a “esquerda”. À primeira vista, “não concordo nem com a esquerda, nem com a direita” pode parecer uma alternativa de quem não quer ser criticado por ninguém. Eu estou disposto a ser criticado pelos dois pólos do espectro político
Além disso, tenho que admitir que para ter, e apresentar, uma opinião clara e coesa, precisaria, também, entender muito mais de Direito brasileiro do que aquilo que entendo. Por incrível que pareça, ter nascido em solo brasileiro não me deu amplo conhecimento a respeito do ordenamento jurídico do país. Não nasci carregando uma cópia da Constituição de 1988 no braço direito e uma cópia do Código Civil brasileiro no braço esquerdo.
O que deve, verdadeiramente, te gerar interesse, caro leitor, são algumas discussões tangentes a este tema. Será que a liberdade de expressão deve ser plena, como é nos EUA, ou deve ter restrições, como nos países europeus? Será que a liberdade de expressão “plena”, da qual os americanos tanto se orgulham, pode, de facto, ser caracterizada desta forma?
Assim sendo, o meu real objetivo com este texto é, partindo de um caso tão atual, realizar uma brevíssima exposição sobre liberdade de expressão, que deve servir de ponto de partida de inúmeras discussões jurídicas, filosóficas, sociológicas e psicanalíticas sobre o tema.
Uma vez que tudo o que aprendi sobre Direito foi em Portugal, peço licença para utilizar o ordenamento jurídico lusitano como exemplo representativo dos demais ordenamentos europeus.
Aqui, a Constituição consagra uma série de direitos fundamentais e ainda reconhece a existência de direitos fundamentais materialmente constitucionais, mas não formalmente constitucionais. Ou seja, um direito pode não estar expressamente consagrado na Constituição (não sendo, então, formalmente constitucional), mas dispor de legitimidade, relevância e dignidade constitucional (art. 16.º CRP). Esses devem ser tratados como se estivessem na Constituição (art. 17.º CRP).
Podemos dizer que a Constituição portuguesa é mais do que aquilo que se encontra entre o seu artigo 1.º e o seu artigo 296.º.
Por mais generosa que a CRP seja no reconhecimento de direitos fundamentais, com o seu catálogo aberto, o exercício de nenhum direito, nenhuma liberdade e nenhuma garantia é irrestrito. Como qualquer aluno de Direito Constitucional e Direitos Fundamentais sabe, caso tenha ido às aulas, há interpretações restritivas ao exercício dos tais direitos (art. 18.º, n.º 2 e 3 CRP). Isso existe para salvaguardar a harmonia e coexistência entre os tais direitos e para que a Constituição consiga ser mais aplicável e não, meramente programática e aspiracional.
Nos EUA, com a primeira emenda da Constituição, a liberdade de expressão é plena e absoluta. Pelo menos, é o que dizem os americanos. Esta afirmação tão comum fere a intuição jurídica, até mesmo, do pior aluno de Direito. A afirmação é falsa. Uma breve pesquisa evidencia que há, sim, limites à liberdade de expressão nos EUA. O discurso difamatório, por exemplo, e o discurso com o intuito de gerar “lawless action”1 não são protegidos e salvaguardados pela tal primeira emenda.
Vemos, então, que há, sim, limites à liberdade de expressão até na land of the free. A questão não deve ser pensada como “o Estado deve impor limites à fala dos seus cidadãos? Sim ou não?”. Esta não é uma pergunta inteligente. A pergunta deve ser, “até que ponto deve o Estado limitar a fala dos seus cidadãos?”.
Uma vez extinto o mito americano, passemos para a exposição de maior importância. O termo “liberdade de expressão” deve ser dividido em duas partículas óbvias para ser compreendido, ou, pelo menos, para começar a ser compreendido. “Liberdade” e “expressão”.
Quanto à “liberdade”, esta deve, aqui, ser entendida como “possibilidade de escolha”, isto é, “existência de escolha”2. Este é o entendimento mais superficial do conceito, mas plenamente útil e suficiente para o que este texto se propõe a ser.
A segunda partícula (“expressão”) é mais complexa e menos simplificável. Podemos substituir a palavra “expressão” por “fala” ou “discurso”, como fui fazendo ao longo do texto. Estas palavras, independentemente de qual escolhemos, são analisadas com dificuldade, porque, para qualquer análise, é preciso entender e estudar a natureza do discurso.
Há algum tempo, estava pensando sobre o assunto e decidi enviar um e-mail ao maior linguista vivo, Noam Chomsky. Chomsky me recomendou a leitura de, entre outros pensadores, John Austin, que, já no século passado, teorizou os speech acts.
Tendo este artigo, pela sua natureza, uma extensão diminuta, não irei expor cada um dos três speech acts teorizados por Austin 3. Do autor, o que mais interessa para estas considerações liminares é a caracterização da fala como ato. A questão que surge desta caracterização é evidente. Se o Estado, através do seu ordenamento jurídico, prevê, delimita, regula, restringe, diretamente ou indiretamente, as ações, relações humanas e estados oriundos de ações (casamento, divórcio, maternidade, paternidade, trabalho, práticas que podem fazer com que um sujeito seja encarcerado, ingestão de álcool,…) por que o Estado não deve regular e limitar a fala?
Vimos que a noção de que em alguns países, a liberdade de expressão é plena é um mito. Assim, a pergunta, verdadeira e muito mais interessante, deve ser, “o que torna a fala um ato tão diferente dos demais atos para que se cogite, por mais irreal que isso seja, não a regular ou limitar?”.
Não consigo, e é esta a minha conclusão, encontrar um bom motivo para que a fala seja completamente livre e irrestringível. Entendo e apoio, evidentemente, as defesas passionais da liberdade de expressão, mas tenho dificuldade em responder à indagação apresentada no parágrafo anterior. O que torna a fala um ato tão peculiar a ponto de merecer defesas tão passionais? Respondendo a esta pergunta e às questões apresentadas neste texto, poderemos somar alguma racionalidade à passionalidade já existente, em excesso, neste debate.
O autor do artigo é de nacionalidade brasileira, pelo que, o texto está escrito em português do Brasil.
1 - Brandenburg v. Ohio (1969).
2 - À luz da Filosofia de Sartre, esta afirmação não faz sentido, porque não há nunca possibilidade de escolher, mas há sempre uma inevitabilidade relativamente à escolha. Até optar por não escolher, por não optar, é uma escolha. Como disse inicialmente, reconhecendo estas visões interessantes e relevantes, mantenho a posição de que a noção de liberdade enquanto existência de escolha, poder escolher, possibilidade de escolha é plenamente suficiente para o pontapé inicial que este texto pretende ser.
3 - Para a tal exposição, diretamente da fonte, leia How to Do Things with Words, 1962.