Milei: o Pontapé para a Discussão do Liberalismo

Javier Milei, entre muitas outras coisas, é um autointitulado anarcocapitalista. Através desta análise às suas políticas e ideias, é feita a ponte para o liberalismo e as suas diversas formas e feitios. Pode um liberal ser conservador?

ARTIGOINTERNACIONAL

Tiago Leite

2/17/20246 min read

Javier Milei, reconhecido por seus seguidores como "El Loco", ingressou no cenário político argentino com um desígnio inequívoco: alterar integralmente a orientação econômico-estatal da Argentina, muitas vezes transmitida de forma contundente.

O contexto demanda uma abordagem mais incisiva sobre a orientação e a dimensão do liberalismo em escala global, bem como suas distintas vertentes. A análise detalhada dessas nuances revela-se fundamental para compreender a amplitude desse movimento ideológico e suas implicações multifacetadas.

O liberalismo vai ser abordado em duas dimensões neste artigo: a visão voltada para a economia e a que se direciona à sociedade. Lamentavelmente, em Portugal, o debate é frequentemente marcado por tabus e ceticismos infundados, carecendo de uma discussão mais aprofundada e esclarecedora.

As eleições na Argentina, ocorridas em novembro de 2023, segundo especialistas, refletiram um clamor por socorro, apesar da escolha de Milei. A espiral inflacionária, as taxas de pobreza alarmantes e a flagrante falta de segurança desencadearam a motivação dessa histórica decisão. O outsider apresentou um conjunto de medidas, como a drástica redução de Ministérios, o fim do Banco Central da Argentina e a adoção do dólar como moeda oficial. Além disso, apresenta opiniões contrárias à lei do aborto e a alguns direitos LGBTQIA+. É relevante afirmar que Milei, desde o início da pré-campanha, ficou associado a declarações polêmicas direcionadas tanto a si quanto a seus adversários políticos, aos quais se referiu como "imbecis" e "corruptos".

Javier Milei autodefine-se como anarcocapitalista, defendendo, em síntese, a premente e total liberalização do mercado e a gradual diminuição do aparato estatal até que este deixe de ser uma necessidade para a população. Defende, ainda, que a segurança não é apenas um direito, mas também um dever a ser exercido. Sua visão sobre o fim do Estado implica o término do funcionamento da Polícia Pública, considerando necessário um porte generalizado de armas, gerando, por vezes, questões e controvérsias.

Além disso, o atual Presidente da República Argentina adota medidas que não se alinham necessariamente ao anarcocapitalismo, posicionando-se contrariamente à liberdade individual, como no caso do direito ao aborto, da propagação da educação sexual e na adoção de uma postura antifeminista. Esta abordagem revela um certo viés conservador e tradicionalista em suas opiniões, gerando debates acerca da coerência e consistência ideológica de sua gestão.

Diante desse panorama, o embate entre Javier Milei e os especialistas destaca-se como um dos pontos culminantes na análise do liberalismo contemporâneo. A complexidade desse confronto reside na multiplicidade de interpretações sobre os rumos econômicos e sociais propostos por cada parte envolvida.

Nos últimos meses, no fervor político na Argentina, testemunhou-se, por duas noites consecutivas de manifestações intensas contra as políticas econômicas propostas por Javier Milei. Os protestos, marcados pela presença de manifestantes no Congresso e na Plaza de Mayo, ressoaram pela insatisfação popular e ecoaram o clamor das panelas.

Em resposta, Milei defendeu suas medidas de desregulamentação econômica como benéficas para o povo, repreendendo os manifestantes e acusando-os de sofrer de "Síndrome de Estocolmo" em relação ao Governo anterior liderado pelo peronista Alberto Fernández. Paralelamente, no cenário sindical, vozes discordantes se intensificam, com as confederações sindicais rejeitando as medidas, argumentando que estas reduzem significativamente os direitos trabalhistas e sociais.

A principal central sindical, a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), inicialmente abstendo-se dos protestos, convocou uma marcha para 27 de dezembro, que visava a revogação do plano proposto por Milei. A CGT planejava ações legais para anular o decreto, em repúdio às medidas que afetam diretamente a legislação trabalhista. Este panorama tenso e marcado por confrontos ideológicos reflete a polarização social evidente da Argentina diante das propostas do novo Governo.

Não há dúvida de que o liberalismo pode ser percebido e interpretado sob diversas óticas. Prefiro categorizá-lo em duas dimensões fundamentais: o liberalismo social, de cariz individual, e o liberalismo econômico. Cada qual com suas nuances e desdobramentos singulares. Este embate ideológico não só reflete o contexto argentino, mas reverbera questões globais sobre os limites, implicações e direções do liberalismo no século atual.

O liberalismo individual, a primeira dimensão, concentra-se na defesa e promoção das liberdades individuais, direitos civis e sociais, enfatizando a autonomia pessoal e a limitação do poder do Estado sobre a dimensão privada dos cidadãos. Este movimento político procura garantir a liberdade de expressão, a igualdade perante a lei, os direitos LGBTQIA+, a liberdade religiosa, a privacidade, entre outros direitos fundamentais. Figuras marcantes dessa orientação política são, indubitavelmente, Stuart Mill, que teve enfoque de seu estudo na filosofia política, e Justin Trudeau, Primeiro-Ministro canadense, que aplicou medidas orientadas nesse sentido.

Essa teoria, em termos práticos, está associada à garantia de liberdade de expressão, igualdade perante a lei, direitos de minorias, defesa dos direitos LGBTQIA+, proteção e respeito pela liberdade de crença e culto, e promoção da diversidade, inclusão social e combate à discriminação em todas as esferas sociais.

Em Portugal, partidos como o Bloco de Esquerda (BE), o Partido Socialista (PS) e o Livre (L), em diferentes proporções, costumam adotar agendas mais alinhadas com questões de liberdade individual, direitos civis e inclusão social em seus programas políticos. O PAN (Pessoas-Animais-Natureza) inclui pautas de defesa dos direitos dos animais, mas também abraça uma postura mais abrangente em relação aos direitos individuais. O único partido de direita que inclui na agenda as liberdades individuais, como direitos relativos ao aborto, eutanásia, e liberdades de casais homossexuais, é a Iniciativa Liberal (IL).

O liberalismo econômico é uma ideologia que preconiza a redução da intervenção estatal na economia, advogando por mercados livres, competição minimamente ou não regulamentada e liberdade de empreendimento. Suas bases incluem a crença de que a livre troca e a alocação de recursos pelo mercado levam a uma distribuição mais eficiente de bens e serviços na sociedade. Nomes que influenciaram esta teoria foram Friedrich Hayek, economista austríaco e vencedor do Prêmio Nobel de Economia, que defendia a livre iniciativa e a limitação do Estado na economia, e Milton Friedman, outro vencedor do Prêmio Nobel de Economia, conhecido por suas ideias de monetarismo e liberalismo econômico.

Propostas práticas dessa ideologia incluem a desregulamentação governamental (maior liberdade de ação para empresas e empreendedores), o livre comércio sem barreiras alfandegárias excessivas. Além disso, inclui privatizações (buscando uma gestão mais eficiente e competitiva, que o Estado é incapaz de fazer) e a redução da intervenção estatal (especialmente em áreas como controle de preços, oferta de serviços e arrecadação de impostos).

Alguns dos partidos portugueses que tendem a abraçar o liberalismo econômico em seus programas são: a Iniciativa Liberal, o CHEGA (porém é importante referir que este modificou muitas de suas posições no período de campanha eleitoral de 2024, carecendo assim de credibilidade sempre que adota uma nova posição), o PSD (embora historicamente tenha tido variações em suas políticas, em certos períodos) e o CDS-PP (no entanto, suas posições podem variar de acordo com as lideranças).

A complexidade e a amplitude do liberalismo contemporâneo, delineadas por distintas facetas e vertentes, refletem um cenário de debates intensos e confrontos ideológicos que transcendem fronteiras. A dicotomia entre as visões do liberalismo individual e econômico, notáveis por suas nuances e implicações, proporciona um terreno fértil para análises mais profundas sobre os rumos da sociedade e da economia.

Enquanto na América e no Norte da Europa o liberalismo encontra solo fértil para florescer, com modelos econômicos e políticos que tendem à liberdade individual e à economia de mercado, no Sul da Europa e noutras partes do globo, as nuances se apresentam de maneira mais diversificada.

É fundamental questionarmos o seguinte: até que ponto a preservação das liberdades individuais coexiste harmoniosamente com a intervenção estatal na economia? Como conciliar as demandas sociais por igualdade e inclusão com os princípios de livre mercado e não intervenção estatal?

Estas questões ganham aspetos distintos em diferentes países e culturas, trazendo à tona um desafio global: como é que as diferentes regiões adaptam e interpretam as teorias liberais em suas realidades sociais, políticas e econômicas? Este panorama diversificado nos desafia a explorar as peculiaridades, semelhanças e contradições que surgem ao adotar essas teorias em contextos geográficos diversos.

O autor do artigo é brasileiro e, por isso, o texto está escrito em português do Brasil.