"Racionais"

ARTIGOPOLÍTICA

Miguel Ângelo

12/19/20244 min read

O animal “superior”, os seres da “razão”. Será que chegamos aos calcanhares da nossa própria imagem? Teremos colocado o pedestal muito elevado? Em que medida podemos intitular-nos racionais? Será que a inteligência que aparentamos ter é apenas uma fachada que contém todas as nossas fraquezas?

Deparamo-nos, diariamente, com medos banais no mundo ocidental, tais como, pequenos insetos, falar em público, claustrofobia e até do escuro, e na maioria dos casos temos a capacidade de compreender a irracionalidade destes medos. No entanto, é absolutamente impensável ponderar sobre a superação destes pavores de uma forma geral, por muito impeditivos que sejam.

Tome-se o exemplo de animais como o tubarão: a Humanidade rotulou-o como um animal sanguinário que tem prazer em desfazer vivos outros seres (erradamente, visto que no ano de 2021, não querendo desconsiderar, foram registados apenas 72 ataques em todo o mundo, dos quais 11 resultaram em morte, sendo que 9 das mortes foram “não provocadas”). Quão racional é temer um animal que provoca 11 mortes por ano enquanto outros animais, tais como o mosquito matam cerca de 725 mil pessoas? Penso que temos esta crença por nossa própria culpa, começando em filmes como o “Shark” ou “The Meg” que influenciam negativamente as nossas crenças (ao pesquisar o nome do filme “The Meg”, deparamo-nos com a secção de “As pessoas também perguntam”, sendo que a pergunta mais frequente é: “Is The Meg based on a true story?” ou “O filme Meg é baseado numa história verdadeira?”). O que mais me espanta na nossa “sociedade racional” é que dizimamos entre 100 e 150 milhões de espécimens por ano, de acordo com a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura). Não existindo quase nenhuma refeição que advenha deste animal, excetuando a barbaridade que é a “sopa de barbatana de tubarão”. As barbatanas do animal são-lhe cortadas, enquanto vivo, e o animal é devolvido ao mar sem nenhuma barbatana, ou seja, sem capacidade de se mover. O mais macabro: de acordo com o Chef Chan Yan Tak, Chef com 3 estrelas Michelin, “As barbatanas não têm sabor”.

A nossa espécie dotada de raciocínio provoca o sofrimento e a morte deste animal, sem razão aparente. Nós, “racionais”, escolhemos o prazer de assassinar um ser inocente, utilizamos de inútil forma o seu corpo para o nosso prazer e, concomitantemente, intitulamos aquele que faz parte da nossa refeição como nossos predadores. Em conformidade com estas atrocidades, decidimos decorar as nossas casas com tapetes feitos de pele animal. Com que objetivo?

Intitulamo-nos de seres da razão para justificar os nossos atos covardes, insensíveis e desprovidos de qualquer lógica. Aprisionamos seres vivos nos nossos lares para os podermos submeter ao nosso poder, sem reparar que na realidade, nós somos súbditos da nossa própria ganância.

É sem qualquer dúvida que afirmo que somos uma espécie covarde: Qualquer espécimen Humano é desprovido de qualquer poder físico relativamente à natureza, assim sendo, criamos utensílios que nos dão a sensação de poder e a possibilidade de submeter outros, sendo que sem estes utensílios ninguém pensaria em enfrentar a maior parte dos outros animais. Enquanto os irracionais matam por necessidade de alimento, nós matamos porque podemos e graças a algo que não é natural.

É cientificamente provado que os ataques de tubarões a pessoas são feitos geralmente por engano, ou seja, são feitos sob crença que somos focas ou outras presas. No entanto, nós colocamos voluntariamente os alvos em todos os animais, independentemente da sua qualidade de presa ou predador. Como é que podemos ser um animal provido de razão quando matamos indiscriminadamente os seres vivos que nos rodeiam que a única regalia é o prazer retirado da matança.

Em simultâneo, a mesma raça que é culpada por tentar erradicar a vida animal sem qualquer razão aparente, autodestrói-se sob forma de consumismo, poluição, maus-tratos ambientais. Este comportamento destrutivo em relação a toda a Natureza (onde nos incluímos), a meu ver, passou já do “ponto de não-retorno”.

A Humanidade mostra-se consistentemente ineficaz no que toca à mudança do estilo de vida. Já é tema de conversa a poluição mundial, o aquecimento global e outros temas de sustentabilidade há algumas décadas, mas todas as medidas tomadas são meras fachadas para esconder o facto de nada ser feito. Foi necessário haver uma guerra que impossibilite o acesso Europeu ao petróleo e gás natural para seriamente serem consideradas outras fontes de energia. Fazemos parte de uma sociedade em que um bem material é mais valioso do que a nossa própria sobrevivência.

Será racionalidade uma palavra que defina a perda de todos os instintos de sobrevivência? Poderá ser uma farsa que utilizamos para justificar os nossos crimes contra nós mesmos e aqueles que não têm como se defender? Como podemos nós ser racionais quando destruímos, de forma totalmente consciente, o único planeta a que podemos chamar de “casa”?

Por fim, como é que uma espécie dotada de razão admite viver em constante conflito entre si. Não me refiro a pequenas lutas entre dois indivíduos ou pequenos grupos. Refiro-me a guerras de grande escala, onde os líderes condenam os seus próprios compatriotas, em muitos casos, à morte certa. Decidimos sacrificar a nossa própria vida pela defesa de uma construção cultural, no caso países ou nações. Não nos chega destruirmos a vida daqueles que nos rodeiam, queremos finalizar o ato destruindo também a nossa.

O livro “Deus das Moscas” descreve-nos o fenómeno Humano de uma forma distópica, mas justa. Neste livro, William Golding relata-nos a estória de um grupo de rapazes na adolescência presos numa ilha, e ainda que no início cooperem para formar uma sociedade, acabam por se tornar violentos uns com os outros Analisemos a obra de um ponto de vista antropológico: neste caso, todos os Humanos da comunidade são homens, o que dita um destino à priori, sendo esse uma não continuação da linhagem sob as circunstâncias apresentadas. Nessa situação vemos que, mesmo o ser humano, necessitando de cooperação para sobreviver individual e coletivamente (como espécie, elevando o caso a tal) mostra-se incapaz de utilizar a razão de modo a alcançar o bem comum. Paradoxalmente, somos irracionais ao ponto de causar sofrimento em quantidades absurdas a seres vivos, mas racionais para o fazermos de forma consciente. Desta linha de pensamento concluo que temos a capacidade para usar a razão, no entanto, não a usamos de forma eficiente e ultimamente boa.

Em suma, infiro que o ser humano é um ser com acesso à racionalidade, no entanto, em não raros casos, escolhe não fazer uso de tal dom, agindo de uma forma motivada pela agressividade, ganância e pelo egocentrismo.