Secretário-Geral das Nações Unidas: Uma Bicicleta Sem Rodas
ARTIGOPOLÍTICAINTERNACIONAL
Há alguns séculos, a função do Papa tinha duas dimensões, uma política e uma religiosa, sendo a última, evidentemente, a principal. Era a função religiosa—oriunda do facto de o Papa ser o representante e líder máximo da fé católica—que legitimava o seu poder político. Assim, podemos dizer que a tal função religiosa era instrumental, mas não, meramente acessória.
Até alguns séculos atrás, os papas eram mais poderosos do que os reis. Era o Papa quem coroava os monarcas dos diferentes reinos católicos. Vemos no Papa Alexandre VI, da Família Borgia, e no Papa Leão X, da Família Médici, por exemplo, alguns dos muitos casos que evidenciam a vastidão do poder político papal durante a maior parte da existência da Igreja Católica. O primeiro, no século XV, e o segundo, no XVI, utilizaram a Cathedra Petri para ampliar ainda mais a esfera de influência das suas respectivas famílias.
Já há algum tempo, a função do Papa não tem mais esta dimensão política. Ele continua a ser o Chefe-de-Estado do Vaticano, mas tem a mesma relevância política que tem o Rei da Inglaterra: nenhuma. Resta a dimensão religiosa. A figura do Bispo de Roma mudou, mas ainda faz sentido, tendo a sua função principal sido preservada, afinal, o Papa continua sendo o líder da Igreja Católica Apostólica Romana.
Há uma outra figura (não tão antiga) cuja função também sofreu grandes mudanças: o Secretário-Geral das Nações Unidas. Permita-me, agora, apresentar alguns tweets do atual titular deste cargo, António Guterres, para que a comparação subsequente já se torne evidente.
Tweet 1 (Agosto de 2024):
Condeno a contínua perda de vida em Gaza.
Reitero o meu apelo urgente por um cessar-fogo imediato e pela libertação imediata de todos os reféns.
Tweet 2 (Setembro de 2024);
Reitero o meu apelo ao cessar-fogo imediato e à libertação imediata e incondicional de todos os reféns ainda detidos em Gaza.
Tweet 3 (Outubro de 2024):
Estou voltando de Kazan, onde, mais uma vez, participei da Sessão Outreach da Cúpula dos BRICS, que representa quase metade da população mundial.
Na sessão, pedi uma paz justa na Ucrânia, alinhada à Carta da ONU, Direito Internacional e às resoluções da Assembleia Geral.
(…)
Na minha reunião com o Presidente Putin, enfatizei que a invasão russa da Ucrânia violava a Carta da ONU e o Direito Internacional e reiterei os pontos que levantei na sessão da Cúpula.
Antes de apresentar alguns tweets do Papa Bergolio e proceder à comparação que motiva este texto, preciso tecer algumas considerações sobre os tweets do Engenheiro Guterres. Preciso fazê-lo para não perder a oportunidade e não ficar com peso na consciência (aquela que me resta).
Com o advento das community notes, no X (antigo Twitter), vemos algumas situações cómicas, como o chefe máximo das Nações Unidas sendo contrariado, tendo as suas afirmações refutadas por factos referidos por cidadãos comuns do dia-a-dia, de forma anónima.
No último tweet apresentado, sobre o encontro entre Vladimir e o Engenheiro Guterres, as community notes afirmam que a ONU “é baseada no princípio da igualdade soberana de todos os seus membros”—citando o artigo 2.º da Carta da ONU—"e não baseada nos tamanhos das populações.” Esta afirmação busca desconstruir a “desculpa” apresentada por António no primeiro parágrafo do seu tweet, no qual afirma que os BRICS representam “quase a metade da população mundial”.
É importante referir, também, que o evento não tinha como tema a obtenção da paz na Ucrânia. O líder ucraniano não estava sequer presente. A sessão em causa foi de iniciativa dos BRICS, um bloco de países que vem buscando acabar com a hegemonia da ONU no cenário geopolítico mundial, e fazer frente a potências como os EUA. Este ímpeto torna-se claro se confrontarmos a lista dos novos membros dos BRICS (1), que conta com o Irão e os Emirados Árabes Unidos, por exemplo.
Resumindo, a reunião não tinha como tema principal (ou secundário ou terciário) a paz. Repito: lá, não havia qualquer representação do Estado Ucraniano. A única coisa mais estúpida do que a justificação de Guterres são as pessoas que acreditam nela.
Agora, por favor, leiam com atenção os seguintes tweets do Papa Francisco.
Tweet 1 (Setembro de 2024):
Continuo próximo do povo ucraniano martirizado, que foi severamente afetado pelos ataques à infraestrutura energética. Lembremo-nos de que a voz dos inocentes é sempre ouvida por Deus, que nunca é indiferente ao seu sofrimento!
Tweet 2 (Agosto de 2024):
Vamos #RezarJuntos para que os caminhos para a paz se abram no Oriente Médio, assim como na martirizada Ucrânia, em Mianmar e em todas as regiões devastadas pela guerra. Que isso aconteça por meio de um compromisso com o diálogo e a negociação, e pela abstenção de ações violentas.
Tweet 3 (Outubro de 2024):
Continuemos a rezar pelas pessoas que sofrem devido à guerra: a Palestina martirizada, Israel, Líbano, a Ucrânia martirizada, Sudão, Mianmar e todos os outros. Que possamos invocar para todos o dom da paz
Se precisei, após os tweets de Guterres, adicionar uma importante nota, agora, não será diferente. A Palestina e a Ucrânia são adjetivadas como “martirizadas”, mas o Sudão e Mianmar não o são.
Parece estranho que o termo “martirizado” não seja nem aplicado ao povo do Sudão, nem ao povo de Mianmar. Num destes países, em 14 meses, mais de 61 mil pessoas morreram em decorrência da guerra (2). Noutro, vemos mais de 2,3 milhões de pessoas deslocadas como consequência da guerra (3).
Na Ucrânia, morreram 43 mil4 e na Palestina, não sendo exatamente inteligente ou razoável confiar nos números difundidos por um grupo terrorista, menos de 41 mil (5). Os trágicos números de mortos em Mianmar e no Sudão são claramente superiores aos da Palestina e aos da Ucrânia. Evidentemente, uma análise destas deve ter em conta a proporção entre deslocados e mortos e o total de habitantes das regiões afetadas. Mesmo tendo a relevância desta ponderação em mente, os números absolutos importam. Importam para afirmarmos que a adjetivação de Francisco leva a conclusões enganadoras.
O sofrimento de 1000 vítimas da guerra é a soma do sofrimento de 1000 pessoas. Assim, o sofrimento de 1 milhão de vítimas, sendo a soma do sofrimento (subjetivo, óbvio) de 1 milhão de pessoas, é maior. Neste tipo de estudo, é importante atravessar relativismos e olhar para números que buscam calcular o incalculável.
A caracterização do Papa é estranha e não parece acidental. Mesmo se acidental, somos responsáveis por aquilo que dizemos “por querer”, por aquilo que deixamos de dizer e, também, por aquilo que dizemos “sem querer”.
Este pequeno detalhe que é a falta de abrangência do adjetivo “martirizada” na frase em questão retrata e, simultaneamente, alimenta uma indignação seletiva que, quando denunciada, é erroneamente categorizada como whataboutism. Sejamos intelectualmente honestos e indignemo-nos com tudo o que deve causar, numa pessoa sensata, indignação—dos excessos injustificáveis de Israel às ilegitimidades das reivindicações russas, não nos esquecendo nunca das demais brutalidades que acabam por ser apagadas dos jornais e das discussões do quotidiano.
Apesar de não ser este o tema central deste artigo, é sempre importante aproveitar as oportunidades de destacar inconsistências em discursos tão populares e ressaltar como eles refletem patologias sociais mais gerais e graves do que imprecisões presentes em alguns tweets.
Voltemos à minha tese central. O confronto entre os tweets apresentados é um excelente ponto de partida para uma comparação inevitável. O Secretário-Geral das Nações Unidas é o Papa Secular. Esta tese foi construída (permitam-me o auto-elogio) com rigor linguístico. Reparem que eu disse—ou, “escrevi”, para termos, aqui, um rigor meta-linguístico—, “o Secretário-Geral”, não, “António Guterres”. O motivo disso não é qualquer apreço da minha parte pelo Engenheiro Guterres, uma vez que—caso não seja evidente—não tenho nenhum tipo de apreço pelo Engenheiro Guterres. Não venho, aqui, hoje, afirmar que Guterres é um incompetente, embora esta seja uma linha argumentativa completamente possível e razoável. A minha crítica tem um alvo maior do que o António. Critico, aqui, a entidade “Secretário-Geral das Nações Unidas”.
Identificado o verdadeiro alvo da minha tese, passemos para a caracterização de “Papa Secular”.
“Papa Secular” é uma manifestação da ideia de obsolescência. Como já vimos, a única dimensão, isto é, a única função do Papa, hoje, é de natureza religiosa. Assim, um Papa Secular é pura e simplesmente inútil. Um Papa Secular tem a mesma utilidade que tem uma bicicleta sem rodas ou um jogo de garfos e facas num restaurante de sopas.
Chegamos, então, ao título deste ensaio. O Secretário-Geral da ONU tem a utilidade de uma bicicleta sem rodas: uma bicicleta que já foi completamente equipada, funcional e empolgante pelo seu ineditismo no mundo das bicicletas, mas que hoje, não serve para nada.
O Papa, pelo menos, como já dito, exerce a sua função, independentemente de acreditarmos, ou não, em Deus e naquilo que prega o Catolicismo. Para mais de 1,2 bilhões de pessoas (6), o Papa tem, sim, uma função importante. A Igreja—e o Papa, enquanto seu líder—é importante nem que seja pelo mero facto de ser importante para mais de um bilhão de pessoas.
Enquanto o Papa Religioso exerce a sua função, o Papa Secular é uma sátira de si mesmo, representando o quão rapidamente o seu trono em Nova York se tornou anacrónico e obsoleto, uma peça de museu para a qual os visitantes olham com estranhamento e perguntam, “E isto? Para que será que servia?”
Porto, 2024.
Daniel Sister.
1 - ‘Brics: What is the group and which countries have joined?’, in BBC. Publicado em 01/02/24. Disponível em https://www.bbc.com/news/world-66525474
2 - 'Invisible and severe' death toll of Sudan conflict revealed’, in London School of Hygiene & Tropical Medicine. Publicado em 13/11/24. Disponível em https://www.lshtm.ac.uk/newsevents/news/2024/invisible-and-severe-death-toll-sudan-conflict-revealed
3 - ‘Myanmar: three years of a devastating, under-reported war’, in Action on Armed Violence (AOAV). Publicado em 02/02/24. Disponível em https://aoav.org.uk/2024/myanmar-three-years-of-a-devastating-under-reported-war/
4 - ‘Kyiv reveals total Ukraine casualties in Putin’s war for first time’, in Politico. Publicado em 08/12/24. Disponível em https://www.politico.eu/article/ukraine-volodymyr-zelenskyy-announces-its-total-military-casualties-first-time/
5 - Sugiro a leitura do relatório sobre o estudo realizado pela Henry Jackson Society, que denuncia a total falta de credibilidade e honestidade no cálculo do número de mortos em Gaza. O número “oficial” é 41 mil, mas acreditar em informações difundidas por um grupo terrorista não é a alternativa mais inteligente. Disponível em https://henryjacksonsociety.org/wp-content/uploads/2024/12/HJS-Questionable-Counting-%E2%80%93-Hamas-Report-web.pdf
6 - ‘Status of Global Christianity, 2024, in the Context of 1900-2050’, in Center for the Study of Global Christianity. Disponível em: https://www.gordonconwell.edu/wp-content/uploads/sites/13/2024/01/Status-of-Global-Christianity-2024.pdf
Referências
‘Brics: What is the group and which countries have joined?’, in BBC. Publicado em 01/02/24.
Disponível em https://www.bbc.com/news/world-66525474
‘'Invisible and severe' death toll of Sudan conflict revealed’, in London School of Hygiene & Tropical Medicine. Publicado em 13/11/24.
Disponível em https://www.lshtm.ac.uk/newsevents/news/2024/invisible-and-severe-death-toll-sudan-conflict-revealed
‘Questionable Counting: Analysing the death toll from the Hamas-run Ministry of Health in Gaza’, por Andrew Fox, in Henry Jackson Society. Publicado em Dezembro de 2024.
Disponível em https://henryjacksonsociety.org/wp-content/uploads/2024/12/HJS-Questionable-Counting-%E2%80%93-Hamas-Report-web.pdf
‘Kyiv reveals total Ukraine casualties in Putin’s war for first time’, in Politico. Publicado em 08/12/24.
Disponível em https://www.politico.eu/article/ukraine-volodymyr-zelenskyy-announces-its-total-military-casualties-first-time/
‘Myanmar: three years of a devastating, under-reported war’, in Action on Armed Violence (AOAV). Publicado em 02/02/24.
Disponível em https://aoav.org.uk/2024/myanmar-three-years-of-a-devastating-under-reported-war/
‘Status of Global Christianity, 2024, in the Context of 1900-2050’, in Center for the Study of Global Christianity. Publicado em xx/xx/xx.
Disponível em: https://www.gordonconwell.edu/wp-content/uploads/sites/13/2024/01/Status-of-Global-Christianity-2024.pdf