SportsWashing – A outra imagem do desporto

Uma análise a todas as movimentações feitas no desporto, feitas com um objetivo diferente ao que este nos acostumou

ARTIGOINTERNACIONAL

Francisco Novais

12/3/202310 min read

Porque é que países como Qatar e Arábia Saudita, sem qualquer tradição no futebol, decidem organizar em 2022 e 2034, respetivamente, o maior evento futebolístico do mundo: o Mundial de Futebol? SportsWashing, definido como a prática que usa o desporto para limpar a imagem de uma região ou de um país, poderá ser a resposta a esta questão.

Ainda que seja um tema bastante atual, o SportsWashing já foi utilizado anteriormente. Hitler usou os Jogos Olímpicos de 1936 para tentar transmitir a ideia de que a Alemanha era um exemplo de organização de eventos desta natureza, abafando assim as críticas ao Nazismo.

Se olharmos ainda mais para trás, no Império Romano, os nobres diziam que se o povo tivesse pão e circo não se preocuparia com as atitudes do Rei. O desporto pode ser visto como o circo dos dias de hoje.

No início do milénio, Vladimir Putin começou uma campanha de SportsWashing com o intuito de desassociar a Rússia do Comunismo e serem vistos como uma potência desportiva.

Roman Abramovich foi um dos principais impulsionadores desta campanha, comprando o Chelsea F.C. de Inglaterra para mostrar que os russos são capazes de revolucionar o desporto rei.

A Gazprom, empresa de energia russa, também foi crucial para esta mudança de imagem, ao tornar-se a principal patrocinadora da UEFA Champions League, reforçando que os russos são protagonistas no futebol. O auge deste investimento foi a organização do Mundial de Futebol em 2018, maior evento desportivo do mundo.

Apesar do futebol ser o principal desporto na Europa, não era o suficiente para a Rússia. Com o intuito de transmitir uma imagem multidesportiva, organizaram os Jogos Olímpicos de Inverno em 2014. Foram o país mais medalhado na competição e o segundo com mais medalhas de ouro.

Em 2015, Putin acusou os EUA de sabotagem por indigitarem Joseph Blatter (ex-presidente da FIFA) como corrupto. Putin afirma ainda que esta atitude foi tomada por se sentirem intimidados pelo crescimento da Rússia e dos países do Golfo Pérsico no desporto - uma manobra clara de criação de bodes expiatórios para os russos serem vistos como desfavorecidos e vítimas do poder americano.

Num espaço de menos de 20 anos, a Rússia deixou de ser vista como uma ditadura comunista famosa por envenenar opositores e passou a ter a imagem de potência desportiva. O plano de Putin estava a ser extremamente bem-sucedido.

A ganância extrema, contudo, acabou por boicotar o projeto. O governo russo patrocinou um esquema de doping para os seus atletas em diversas provas, principalmente nos Jogos Olímpicos de inverno organizados pelo país. Os serviços secretos russos trocaram os exames dos seus competidores por exames “limpos”. Este acontecimento manchou e tirou toda a credibilidade ao Comité Olímpico Russo.

A invasão à Ucrânia colocou um ponto final ao projeto russo de SportsWashing. O intuito do SportsWashing é “lavar” a imagem do país, mas não há desporto que consiga abafar uma guerra na Europa. Esta invasão causou um boicote total à participação da Rússia nos eventos desportivos: foram expulsos do Mundial de Futebol, dos Jogos Olímpicos; foram banidos das competições europeias de futebol e a Gazprom deixou de patrocinar eventos desportivos fora do país.

Putin quase conseguiu concretizar a limpeza de imagem através do desporto, mas acabou por fracassar e hoje é visto como um ditador que não olha a meios para atingir os seus fins. No entanto, serviu de exemplo para outros governantes que aproveitaram e melhoraram as suas ideias. Mais recentemente o Qatar seguiu esta estratégia e trouxe novamente este assunto para a ribalta.

No caso do Qatar, tal como a Rússia, começou pelo investimento no futebol, tentando fazer com o PSG, clube de futebol francês, aquilo que o Abramovich fez com o Chelsea. No entanto, com uma intervenção mais direta do governo, uma vez que foi comprado pelo “Qatar Sports Investments”, um fundo de investimento do Qatar.

Em 2013, a Qatar Airways começou a patrocinar o Barcelona FC, clube espanhol de futebol, como Main Sponsor nos equipamentos da equipa. Será que o objetivo era divulgar a companhia aérea ou o próprio país?

Neste período o Qatar conseguiu estar diretamente associado à imagem dos melhores jogadores do mundo. Quando se falava em Qatar vinha-nos automaticamente à cabeça a imagem de Messi, Neymar, Suárez e não uma imagem de desrespeito pelos direitos das mulheres.

Mais uma vez inspirado nos russos, organizaram o Mundial de Futebol em 2022, campeonato este coberto de polémicas. Desde o clima pouco propenso à prática desportiva até às mortes ocorridas durante a construção dos novos estádios.

Como é que um país com este clima conseguiu organizar a maior prova desportiva do mundo? Surgiram suspeitas de corrupção, sob Joseph Blatter e sobre a compra de votos de federações africanas.

O jornal The Guardian afirma que morreram mais de 6700 imigrantes no Qatar na preparação para o mundial. A Amnistia Internacional denunciou a exploração dos trabalhadores na preparação deste campeonato: “sofreram abusos sistemáticos, em alguns casos trabalho forçado”. Os trabalhadores tiveram até oito meses de salários atrasados, inclusive documentos retidos pelos empregadores para que estes não pudessem abandonar o país. Viviam em alojamentos superlotados, sem condições básicas.

Com todas estas polémicas, porque será que pouco ou nada se fala destes temas? E é aí que entra o verdadeiro SportsWashing. Quando tinha tudo para ser lembrado como “O Mundial das Polémicas”, ficou marcado como “O Mundial dos Recordes” (A World Cup of Records - Goal.com). Messi conquistou pela primeira vez o título de campeão do mundo, igualando-se a Maradona, ídolo máximo do seu país. Cristiano Ronaldo torna-se o primeiro jogador a marcar em cinco mundiais diferentes. Além disso, pela primeira vez o anfitrião perdeu todos os jogos, daí conseguirmos perceber que a prioridade do Qatar não era o rendimento desportivo.

Até ao momento podemos considerar que têm sido bem-sucedidos. Os maus-tratos e as mortes de imigrantes não foram sancionados, contrariamente ao que se verificou com a Rússia. Talvez porque, aos olhos dos ocidentais, as vidas desses indianos, paquistaneses, nepaleses, bengaleses e cingaleses não valem tanto como as dos europeus. É uma triste realidade que ajuda na limpeza de imagem do Qatar.

O maior caso de SportsWashing do mundo é a Arábia Saudita, uma monarquia absoluta baseada na lei islâmica muito conservadora, desrespeitando direitos humanos no geral, afetando, principalmente, as mulheres e membros da comunidade LBGTQ+.

O investimento no desporto é controlado pelo PIF (Public Investment Fund), fundo soberano da Arábia Saudita. Este investimento começa pela criação da LIV Golf Tour, presidida por Greg Norman, sete vezes primeiro lugar do ranking mundial e vencedor do prémio BBC Overseas Sports Personality of the Year em 1986 e em 1993. Trata-se de uma figura muito querida nessa modalidade, o que foi muito útil para criar uma boa visão da LIV.

A forma que têm para atrair os melhores atletas do mundo é através das remunerações extremamente elevadas, como por exemplo o golfista Dustin Johnson, um dos melhores jogadores do mundo, que atuou na PGA durante 15 anos e ganhou cerca de 75 milhões de dólares nesse período. Em 2023 mudou-se para a LIV e no primeiro ano arrecadou 68,5 milhões de dólares.

É muito aliciante receber em apenas um ano quase tanto como o que recebeu nos últimos quinze. Inclusive, a maior parte dos atletas continua a viver nos EUA, uma vez que os torneios de golf só acontecem aos fins-de-semana. É perfeitamente compreensível que os atletas aceitem esta mudança e que não se sintam a representar o regime. No fundo, continuam com a mesma profissão, apenas exercem num país diferente, com um salário muito mais elevado.

Temendo desaparecer nos próximos anos, a PGA e European Tour decidiram [1] juntar-se aos sauditas da LIV e criar um circuito conjunto.

No golf já se aceitou que é impossível fazer-se frente ao investimento saudita: ou se aliam a esta nova potência ou são aniquilados. E acredito que seja uma questão de tempo até acontecer em outros desportos. Não há tradição e cultura europeia e norte-americana que consiga fazer frente aos investimentos multimilionários sauditas.

Os desportos de combate são outro foco de investimento dos sauditas. Entraram para a WWE em 2013, e em abril do ano seguinte organizaram o primeiro evento em solo saudita. Este evento foi alvo de muitas críticas pelos fãs visto que as mulheres não poderiam combater por ser contra as leis locais. A lei viria a mudar em 2019, permitindo pela primeira vez um combate feminino na Arábia Saudita. Apesar de fazerem esse movimento de evolução nos direitos das mulheres, quatro ativistas feministas estavam presas e outras a aguardar julgamento.

Este é apenas mais um caso de hipocrisia, onde se usa o desporto para passar uma imagem de mudança social, quando internamente pouco ou nada muda. Estabeleceram uma parceria com a WWE[2] para terem 2 Pay-Per-Views [3] por ano, através de mais um investimento milionário como já é habitual.

Muitas estrelas do boxe falam sobre a Arábia Saudita. Deontay Wilder, ex-campeão mundial de boxe, afirmou que quem não está na Arábia Saudita deveria estar e acrescentou ainda que o Médio Oriente é onde tudo acontece.

Mike Tyson elogiou o Príncipe Khalid que tem tido muito sucesso e acrescentou ainda que ele próprio quer fazer parte do sucesso do príncipe. Muitos atletas associam a sua imagem à Arábia Saudita e estão diretamente ligados à propaganda feita ao país.

Formula 1 foi mais um desporto usado pela Arábia Saudita. O Grande Prémio da Arábia Saudita entrou para a F1 em 2021 e já está acordado para continuar por pelo menos 10 anos.

O CEO da F1, Stefano Domenicali, sugeriu que a revolução contra a Arábia Saudita fosse uma revolução silenciosa. Sugestão curiosa vindo de quem não poupou palavras para afirmar que os sauditas estão num bom caminho. Coincidentemente (ou não), duas semanas antes da segunda corrida na Arábia Saudita foram executadas 81 pessoas num único dia, condenadas a pena de morte, situação que demonstra que não estão num caminho assim tão bom. Silêncio sobre as violações de direitos humanos e enfase no investimento desportivo, Stefano Domenicali representa bem os objetivos sauditas.

Por último, mas não menos importante, o futebol. O desporto rei não pode ficar de fora da maior manobra de SportsWashing. Mais uma vez, seguindo o exemplo russo de adquirir um grande clube de futebol, desta vez, o escolhido pela Arábia Saudita foi o Newcastle United FC de Inglaterra. Além disso, Arábia Saudita será a sede do Mundial de Futebol, tal como a Rússia havia sido.

Em princípio este seria um investimento de médio longo prazo, visto que é uma prova que acontece de 4 e 4 anos e a sua sede deve variar por todos os continentes. Uma vez que os seus vizinhos do Qatar organizaram em 2022, em teoria outro país asiático só poderia sediar em 2046.

Por sorte, a prova de 2030 será organizada em 3 continentes diferentes, pela primeira vez na história, e para melhorar os países da Oceânia não demonstram interesse em organizar este evento, permitindo assim que a Arábia Saudita seja o país sede em 2034. Mais uma vez os milhões sauditas agilizam processos.

Ainda no futebol, está planeado um investimento de cerca de mil milhões de dólares nos quatro principais clubes da liga saudita de futebol, com o intuito de atrair grandes astros como Cristiano Ronaldo e Neymar. O investimento nestes craques não é apenas pelo seu talento, mas também pela sua imagem e retorno mediático.

Ronaldo é o embaixador do futebol saudita, ou seja, o principal representante a nível internacional. Por sua vez, Neymar tem cláusulas no contrato bastante interessantes: além dos 100 milhões que irá receber anualmente de salário ainda recebe um extra de 500 mil euros por cada publicação que faça nas redes sociais a promover a Arábia Saudita. Em 2023 temos atletas a receber milhões por propaganda política.

Ainda neste tema, temos o vídeo de apresentação do jogador português Otávio, ex – FC Porto. Aqui, os protagonistas são uma criança e o seu pai, representando adeptos do clube português, e proferem expressões como: “A Arábia Saudita é um grande país com uma grande visão, todos os que foram para lá estão felizes”.

Qual é a relevância deste comentário para a contratação de um atleta? Fica cada vez mais claro que o investimento no desporto é apenas um meio para o seu verdadeiro fim, melhorar a imagem da Arábia Saudita para o resto do mundo.

O acontecimento mais grave foi em 2018, o assassinato de Jamal Khashoggi. Este jornalista estava exilado, fugiu do seu país de origem por temer pela vida, uma vez que era assumidamente contra o regime político saudita. Um jornalista ser forçado a fugir do seu país por ser contra o regime já devia ser suficientemente alarmante para todos perceberem que algo de muito errado estava a acontecer, mas, infelizmente não foi isso que sucedeu.

Em setembro de 2018, Jamal Khashoggi foi até ao consulado saudita em Istambul e nunca mais foi visto. Este escândalo deveria ter sido notícia por todo o mundo, no entanto, foi ofuscado por uma outra vinda diretamente da Arábia: as mulheres passaram a ter o direito de entrar em estádios. Num momento em que a imagem do país poderia ser associada à censura, foi associada a uma evolução no respeito pelos direitos das mulheres.

SportsWashing tem sido uma estratégia de sucesso para os países da Península Arábica, onde os seus governantes são capazes de fazer tudo para atingir os seus objetivos. Para estas pessoas não existem limites, nem financeiros e muito menos éticos. O facto de todos os crimes contra direitos humanos serem feitos longe dos holofotes europeus ajuda bastante no sucesso do projeto. O que é condenável fica “escondido” dentro do país, enquanto é exportada a imagem de evolução e progresso.

É difícil julgar os atletas que compactuam com este projeto. A verdade é que são muitos milhões envolvidos que resolvem a sua vida e salvaguardam as próximas gerações das suas famílias. Quantos de nós seríamos capazes de rejeitar essas propostas milionárias?


[1] PGA (Professional Golfers´ Association) Tour e European Tour eram as principais competições de Golf dos EUA e Europa, respetivamente.

[2] WWE (World Wrestling Entertainment) é uma empresa ligada ao entretenimento tendo como principal atividade a luta profissional.

[3] Pay-Per-View da WWE é um sistema onde são vendidas as transmissões dos seus principais eventos

Este artigo representa única e exclusivamente a opinião do seu autor, não representando no todo ou em parte a opinião da Católica Policy Society.