Tragédia como Metáfora

ARTIGOPOLÍTICA

Daniel Sister

11/24/20246 min read

As palavras importam. Se preocupar com as palavras que são utilizadas e com—equiparando a omissão à ação—as palavras que não são utilizadas não é mero preciosismo. A forma do discurso é tão importante quanto o seu conteúdo. Na realidade, esta distinção entre forma e conteúdo não faz qualquer sentido. O discurso é uno.

A utilização de doenças como metáforas é tão natural quanto as doenças propriamente ditas. No meu texto, Manifesto pelo Conhecimento Inútil, por exemplo, afirmo que a noção de que conhecimento válido e credível é, obrigatoriamente, científico “se metastatizou, como câncer que é”.

O câncer é utilizado para representar um mal destrutivo e impetuoso, que, rapidamente, amplia a sua área de domínio. Neste sentido, é uma metáfora muito útil. Afirmar que algo é um câncer permite uma fantástica economia de palavras, além de atribuir um tom sério e quase tão agressivo quanto a doença. O câncer representa uma invasão secreta e impetuosa que não bate na porta antes de entrar.[1]

O problema é que este tipo de artifício linguístico é relevante devido às inferências que se tornam possíveis. Se quem sobreviveu ao câncer “venceu”, os outros são perdedores? Um atleta que perde, numa competição, perde porque não treinou o suficiente ou, talvez, porque não teve a disciplina e a força de vontade necessárias. E quem “perde a luta” contra o câncer?

Estas ideias foram desenvolvidas e popularizadas pela grande Susan Sontag, no seu livro Illness as Metaphor, de 1978. Neste breve ensaio, o objetivo é estudar, como indica o título, tragédias como metáforas.

No documentário Regarding Susan Sontag, a narradora—assumindo a voz de Sontag e lendo trechos dos seus diários—diz, “eu me sinto como a Guerra do Vietnam. Estão usando armamento químico em mim. A minha doença é invasiva, colonizadora”(2). A doença em questão—da qual a escritora sofreu três vezes, durante a sua vida—é o câncer. O que a autora faz, aqui, é o oposto daquilo que ela critica no livro que citei. Ela utiliza uma guerra (uma tragédia) para definir uma doença, um recurso literário um pouco menos preguiçoso e não tão passível de crítica quanto o seu inverso.

As doenças têm vítimas, mas não têm culpados. As tragédias têm vítimas e, quase sempre, culpados. “Se tratarmos uma doença em particular como um mal, um predador invencível, não só uma doença, a maior parte das pessoas com câncer se sentirá desmoralizada ao descobrir o diagnóstico”[3]. Assim, aquilo que culpa, que responsabiliza os doentes pelas suas enfermidades além de não ser certo, não faz sentido.

No caso das tragédias cometidas e não simplesmente ocorridas, devemos, sim, culpar, responsabilizar e desmoralizar os culpados. Mas isso será ainda objeto de exploração e da conclusão deste texto.

Sontag, no seu livro, apresenta três doenças e explica como elas são utilizadas, de formas diferentes, como metáforas. Neste artigo, exploraremos, muito sucintamente, duas tragédias, focando mais em critérios de classificação do que na análise de como elas são utilizadas como metáforas. Veremos o ataque terrorista às Torres Gémeas, em 11 de Setembro de 2001 e os incêndios em Portugal, neste ano, 2024.

O exemplo mais polémico, evidentemente, é o que se popularizou pela data, em inglês, na qual ocorreu: 9/11. É polémico devido à relativização do status de vítima dos EUA. Faz sentido separarmos “povo americano” e “Governo/Estado americano”.

O Governo americano, inquestionavelmente imperialista, pratica uma filosofia, quanto às relações internacionais, de interferência extrema. Os EUA tiveram um papel decisivo, moldando o cenário geopolítico de todos os continentes, principalmente, a partir do pós-guerra. A intervenção americana foi um fator fundamental, por exemplo, para o planeamento e sucesso do golpe militar chileno, liderado por Pinochet]4]; para o planeamento e sucesso do Golpe de Estado Iraniano, em 1953, que derrubou o Governo de Mohammad Mosaddegh[5], e para o planeamento e sucesso do Golpe de Estado Guatemalteco, em 1954, que destituiu o Presidente Jacobo Árbenz[6]. Estes são apenas alguns exemplos de uma lista imensa e crescente, sempre que a CIA decide desclassificar uma leva de documentos.

Qualquer discurso, porém, que relativiza a culpa da Al-Qaeda e culpa os EUA pelos ataques de 11 de Setembro é constituído por ignorância, má-fé, ou wishful thinking por parte daqueles que sonham em ver a América ardendo. Não sendo este um texto sobre o 11 de Setembro (sobre o tema, já há inúmeros livros), importa somente dizer que este é um exemplo de uma tragédia dolosa e—sucinta e categoricamente—mencionar o quão nojentas são as tentativas de relativizar a culpa do grupo liderado por Osama bin Laden.

Neste ano, entre os dias 15 e 19 de Setembro, Portugal estava em chamas. Os locais que não pegavam fogo eram coercitivamente apossados por uma névoa densa e alaranjada, diferente da habitual névoa branca e fresca do Porto.

Ao pesquisar sobre os incêndios utilizando a palavra “negligente”, ou “negligência”, quase todos os resultados encontrados se referem aos incêndios provocados de forma criminosa. Com uma pesquisa um pouco mais profunda, a negligência do Estado se torna evidente.

Vemos reportagens com relatos de bombeiros que, em 2013, já há mais de uma década, denunciavam os investimentos do Governo como insuficientes[7]. Nove anos depois, em 2022, vimos as denúncias—por partes dos bombeiros—permanecerem inalteradas, com a Liga dos Bombeiros categorizando a situação como “subfinanciamento crónico”[8].

Os incêndios de 2024 só causaram surpresa ao público que já se esqueceu do passado recente—com amnésia (seletiva ou não)—e ao público que padece do mal que é o wishful thinking, fenómeno já referido, mas permitam-me uma breve nota.

O problema do wishful thinking não é achar que o futuro será melhor do que o presente, mas ficar surpreso quando o futuro chega, transforma-se em presente e é tão terrível quanto o passado ou, até, pior.

Chegamos, então, ao verdadeiro ponto de interesse, a classificação das tragédias e a possibilidade de as instrumentalizar. Fui, como deve ter percebido, adiantando algumas categorias, mas, agora, chega a hora de procedermos a uma sistematização.

O primeiro caso analisado, do 11 de Setembro, é um excelente exemplo de tragédia dolosa. O segundo caso, o dos incêndios, negligente.

Devido à natureza sucinta destes artigos, não irei explorar as metáforas que podem surgir destas tragédias. Sejam criativos. Tivemos, num dos exemplos, um dos maiores símbolos do sistema financeiro americano sendo destruído por 15 terroristas sauditas, dois dos Emirados Árabes, um do Egito e um do Líbano. Após o ataque, os EUA invadiram o Afeganistão e o Iraque. No outro exemplo, vimos um país em chamas e os políticos elogiando o preparo dos bombeiros (que não estavam devidamente preparados e que criticam e denunciam esta realidade, há mais de uma década).

Quanto à classificação das tragédias, com as minhas vestes de Baptista Machado, proponho o “Critério do Agente” e o “Critério da Culpa”.

O primeiro serve para determinar se a tragédia analisada em si—e se o seu impacto—é imputável à conduta de uma pessoa ou grupo de pessoas. Não resistiria ao crivo deste critério, por exemplo, os furacões e chuvas intensas repentinas que não são previstos pelos meteorologistas.

Se encontrarmos, com o primeiro critério, responsáveis, aplicamos o segundo—o “Critério da Culpa”. Através deste, caracterizamos a responsabilidade do agente. Se o resultado for imputável à conduta ativa, noutras palavras, intencional, chamemos a tragédia de “tragédia dolosa”. Se for imputável a uma conduta negligente, estamos perante uma “tragédia negligente”.

Com este texto, simplesmente, habilito (e encorajo) o meu leitor a utilizar tragédias como metáforas e, utilizando-as, a perseguir aqueles que matam e destroem.

Uma vez concluído o julgamento, transitado o caso em julgado, uma vez identificados os responsáveis, não os deixem dormir nunca mais.

Porto, 2024.

Daniel Sister.

[1] SONTAG, S. (1978) Illness as Metaphor. New York: Farrar, Straus and Giroux. p. 5.

[2] Regarding Susan Sontag (2014)

[3] Ibidem, p. 7

[4] Cf. Chile and the United States: Declassified Documents Relating to the Military Coup, September 11, 1973, by Peter Kornbluh.

[5] Operation Ajax.

[6] Operation PBSuccess.

[7] “Bombeiros consideram insuficiente reforço de 4 milhões”, in Diário de Notícias, publicado em 16/12/13. Disponível em https://www.dn.pt/portugal/bombeiros-consideram-insuficiente-reforco-de-4-milhoes-3590061.html/

[8] “Liga dos Bombeiros critica ‘subfinanciamento crónico’ atribuído pelo Estado às corporações”, in RTP Notícias, publicado em 12/02/22. Disponível em https://www.rtp.pt/noticias/pais/liga-dos-bombeiros-critica-subfinanciamento-cronico-atribuido-pelo-esta do-as-corporacoes_n1383976