Um Olhar sobre a Guerra

Uma análise às complexidades que a Guerra traz a um Estado.

ARTIGOINTERNACIONAL

Cristiana Sá

12/18/20237 min read

Infelizmente, a guerra está na ordem do dia.

Desde 24 de fevereiro de 2022, ouvimos regularmente notícias de conflitos armados na comunicação social. Apresentam-se números e imagens, relatam-se atrocidades, são divulgados discursos de líderes. Primeiro, reportou-se o ataque da Rússia à Ucrânia; há dois meses, juntou-se a luta entre o Hamas e Israel.

Existem várias perspetivas através das quais é importante refletir sobre a guerra. Entre elas, algumas destacam-se por parecerem ser corolários daquilo que se lê, ouve e vê todos os dias nos media.

Primeiramente, se há guerra então tem de haver, antes de tudo, armas para a concretizar. Isso quer dizer que há quem esteja a produzir armas e quem esteja a lucrar com elas.

As maiores empresas de armamento do mundo, em termos de faturação nas suas vendas, são as americanas Lockheed Martin e Raytheon Technologies. Nos últimos 12 meses, faturaram cerca de 67 mil milhões de dólares, valor superior ao de empresas como a IBM, a Lenovo e a Repsol.

Na lista de 2023 das Global 2000 da Forbes, figuram, ao todo, 42 empresas de aviação e defesa, mais 11 do que no ano passado. Entre elas, a Raytheon está na 79.ª e a Lockheed na 159.ª posições.

Além disso, de acordo com o relatório “Global Aerospace and Defense Industry” de 2023 da PwC, apesar de a indústria da defesa ter tido uma descida de 4% em 2022, a procura por equipamento bélico aumentou. A razão da descida de receitas prendeu-se com a variação do valor do dólar e com dificuldades em manter a entrada necessária de matérias-primas.

Posto isto, o relatório afirma que o setor deverá crescer nos próximos anos a um ritmo elevado: próximo de 10% por ano. Contribuindo para este crescimento, está o rearmamento que muitos países estão a adotar como reação à invasão russa da Ucrânia. A Alemanha, que vai despender em defesa a maior soma desde a II Guerra Mundial, é um exemplo disso.

Acrescente-se, também, que os valores da capitalização bolsista destas empresas têm tendência para aumentar: as ações da Lockheed Martin, no início de 2019, passaram de 265,04 dólares para estarem, consistentemente, acima dos 400 dólares após o início da guerra na Ucrânia. Lembremo-nos, ainda que o aumento do valor só existe porque há quem esteja a comprar.

Posto isto, esta análise vem confirmar a ideia de que a guerra é propícia ao crescimento das empresas de armamento. Quer isto dizer que, enquanto uns vivem o conflito, outros colhem os seus frutos económicos e investem na produção de armas.

Agora, será que este é o único aspeto em que uma parte consegue beneficiar economicamente destes conflitos armados?

Uma ideia amplamente presente nas conceções do senso comum sobre a guerra é a de que o interesse económico está envolvido nas ações militares. Há polémica, por exemplo, em relação à intervenção americana no Iraque, país produtor de petróleo, em 2003.

Contudo, hoje, entende-se que, seguindo tal raciocínio, os ganhos não são suficientes para justificar o investimento, isto é, o custo da guerra.

O mesmo raciocínio da guerra por interesse em recursos, normalmente, é estendido para explicar a diferença de atenção dada pelo Ocidente – nomeadamente, a Europa Ocidental, a América do Norte e a Oceânia – às diferentes guerras que se registam no mundo.

A verdade é que, quando se reflete sobre o teor das notícias que nos chegam nestes dias, comparando-as com aquilo que era comunicado antes de 24 de fevereiro de 2022, é fácil depararmo-nos com uma questão: antes da invasão russa à Ucrânia, já não decorriam conflitos armados?

Na realidade, além destes conflitos, também há troca de agressões noutros países do Médio Oriente, nomeadamente, a Síria e o Iémen; na Ásia, em Myanmar; na África, em Moçambique, na Etiópia e nos Camarões; no continente americano, no Haiti.

Na Síria, a guerra já dura desde 2011. A razão para o começo da violência foi a luta pela democracia e a consequente insurreição contra o regime ditatorial, de Bashar al-Assad. Desde o início, contam-se 350 000 mortos e uma das maiores crises de refugiados.

No Iémen, o conflito foi iniciado em 2015. A origem da digladiação foi também política, tendo um grupo de rebeldes obrigado o governo a exilar-se. Já se verificaram mais de 150 000 mortes.

Em Myanmar, em 2020, os militares fizeram um golpe de estado contra o regime democrático instaurado 5 anos antes; o conflito dá-se, assim, entre as forças armadas e quem não aceita o golpe. Já houve pelo menos 2 300 mortes e milhares de detenções.

Em Moçambique, tem havido ataques terroristas desde 2017, causando mais de 4 300 mortes e para cima de 1 milhão de deslocados. Registam-se atrocidades como o rapto de mulheres para se tornarem escravas sexuais e de rapazes para se tornarem crianças-soldado.

Na Etiópia, a região de Tigré, governada por rebeldes nos últimos 30 anos, foi alvo de um ataque do Governo em 2020, com o objetivo de a retomar. Desde então, estima-se que tenha havido cerca de 600 000 mortes à conta da violência, ou devido à fome e à falta de cuidados de saúde daí advindas.

Nos Camarões, o conflito, iniciado em 2016, tem como objetivo a independência das regiões anglófonas do país e já causou a morte de 4 000 civis e a deslocação de 712 000 pessoas.

Por fim, no Haiti, a violência iniciou-se em 2021 com o assassinato do presidente, e, hoje, a luta entre grupos de organização criminosa comprometem serviços como o abastecimento de eletricidade. De janeiro a agosto de 2023, o conflito causou mais de 2 400 mortes.

Entre estas guerras, algumas já foram cobertas pelo jornalismo português, mas, hoje, não têm praticamente nenhuma representatividade nos nossos órgãos de comunicação social.

As razões para tal, primeiramente, podem estar relacionadas com a incapacidade fazer a cobertura jornalística. Isso verifica-se, concretamente, no contexto da guerra na Etiópia, à qual “os jornalistas não têm acesso nem existe um fluxo livre de informação que venha do Tigré”, como disse Strootbants, diretor para a Europa e o Médio Oriente e África do Norte, do Institute for Economics and Peace.

Passada esta ressalva, o driver primário da atenção parece ser a ameaça do recurso a armas nucleares e da escalada do conflito.

A Rússia é o país com maior número de armas nucleares: 5889 ogivas. Este número – de que os EUA se aproximam, com 5244 – seria mais do que suficiente para destruir o planeta (várias vezes). Quanto a Israel, apesar de o país não o confirmar oficialmente, é estimado que tenha 90 ogivas, o que o coloca na oitava posição entre os nove países com armas nucleares.

Em contraste, nenhum dos outros Estados em guerra aqui referidos detém equipamento nuclear.

Além disso, como Christopher Blattman, economista da Universidade de Chicago, disse em 2022, a razão para a grande atenção à Ucrânia é o facto de este não ser um conflito regional, mas um potencial conflito global, já que as potências mundiais estão a mostrar apoio a um dos lados. Nomeadamente, os EUA apoiam a Ucrânia e a China tomou o partido da Rússia.

Porém, lembremo-nos que não é este tipo de questão que predomina nos media; pelo contrário, a sua comunicação apela ao lado humano das guerras, isto é, foca a tragédia, o heroísmo e os horrores da guerra. Assim sendo, uma vez que se foca esta vertente mais universal, não se devia mapear todos os conflitos existentes?

Outro fator pode responder a esta questão: as semelhanças sociais e culturais entre países. Por exemplo, no Ocidente, ver prédios destruídos por bombardeamentos gera mais empatia do que ver construções que não existem no nosso contexto. Além disso, também a língua, a religião e a história colonial passada parecem influenciar a empatia com os conflitos.

Mas, neste sentido, ficam dúvidas sobre se o mundo está realmente a evoluir na perceção da igualdade de direitos entre países e do valor da vida humana. Há diferenças tão extremas como a de noticiar que “Bombardeamento russo mata duas pessoas em aldeia ucraniana” (SIC Notícias, 26 de agosto) e não se dedicar uma palavra às 600 000 vítimas na guerra do Tigré.

Posto isto, há muitas outras questões que se pode aprofundar relativamente à guerra; e a realidade é que é um tema bastante complexo.

Sobre o armamento, não se encontram facilmente, nas plataformas digitais, debates que coloquem em causa a indústria da defesa.

Além disso, nesta matéria, é particularmente difícil conciliar princípios e ações. Poderia optar-se pela desmilitarização dos estados – como, aliás, é defendido, em Portugal, pelo Bloco de Esquerda – mas isso implicava que esses estados se tornassem alvos fáceis. Tal como num jogo de xadrez, a lógica subjacente às forças militares é de que o seu mero posicionamento dissuada ataques inimigos.

Contudo, os países que subscrevem a Declaração Universal dos Direitos Humanos não deveriam colocar quaisquer questões acima do artigo n.º 3 da Declaração: “Todos os seres humanos têm direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.” Desta perspetiva, quaisquer razões para justificar o menosprezo por algumas guerras em detrimento de outras são inválidas.

Posto isto, não há um plano inequívoco que dependa de um ou de um grupo de players que se possa seguir para atingir a paz mundial; essa apenas será conseguida quando for realmente desejada acima de outros interesses pela maioria dos intervenientes.

E, tendo em conta as diferentes motivações e naturezas das diversas guerras, essa paz terá de se materializar não apenas na abstenção de realizar ataques armados, mas também num apoio aos processos de democratização.

Lembremo-nos que o mesmo Gandhi que afirmou que “a paz é o caminho” também foi quem disse que “o mais perfeito ato do Homem é a Paz. E por ser tão completo, tão pleno, em si mesmo, é o mais difícil.”

Este artigo representa única e exclusivamente a opinião do seu autor, não representando no todo ou em parte a opinião da Católica Policy Society.