Viver em Liberdade: a Cultura e a Arte

O que significou o 25 de abril para a Cultura e a Arte?

ARTIGOABRIL DE 74CULTURA

Cristiana Sá

4/21/20245 min read

Na Cultura e na Arte, a diferença entre o antes e o depois do 25 de abril foi muito clara. Foi o 25 de abril que levou a que fosse abolida a necessidade de aprovação das obras, o “lápis azul”, a perseguição a artistas, a imposição de uma mentalidade ao povo.

Como regime autocrático que foi, o Estado Novo precisava de garantir a perpetuação do poder, portanto não permitia a difusão de contestações ou ideias político-sociais diferentes das vigentes. Mas não só: a moral salazarista – Deus, pátria e família – não podia ser posta em causa. A censura foi a ferramenta ideal para buscar estes objetivos.

Havia livros, peças de teatro, canções, filmes proibidos. Por exemplo, O Quarto Dia, de Miguel Torga (que foi preso devido ao livro), Praça da Canção, de Manuel Alegre e, também, livros estrangeiros como O Manifesto Comunista, de Karl Marx ou, até, Força Para Amar, de Martin Luther King. A par com muitas outras produções para o teatro, não se pôde apresentar a peça Felizmente Há Luar! de Luis Sttau Monteiro, bem como, a título ilustrativo, o filme Mamma Roma de Pier Paolo Pasolini e, na música, as canções de resistência, como o disco O Canto e as Armas de Adriano Correia de Oliveira (criado a partir de poemas de Manuel Alegre).

Noutros casos, a censura permitia publicações, ou difusões, com cortes. Entre 1945 e 1952, 251 filmes tiveram de excluir cenas para serem aprovados. Por sua vez, o “lápis azul” – como ficou conhecida a censura dos materiais escritos, tornando-se um símbolo da ditadura – cortava, nuns casos, secções inteiras de textos, noutros casos, apenas palavras pontuais. Tal acontecia até em notícias, deturpando a informação transmitida (sim, porque a censura também abarcava o jornalismo).

Nem mesmo um modo de expressão cuja subversão só podia ser abstrata, a arquitetura, passou despercebido. Entre as décadas de 1930 e 1950, pretendeu-se que todas as novas construções contivessem elementos tradicionais portugueses e foi repudiado o Movimento Moderno. Imperou, então, o estilo que ficou conhecido como Português Suave, que provinha da crença da existência concreta de um (e um só) estilo arquitetónico português; vemo-lo, hoje, por exemplo, nas escolas primárias espalhadas pelo país.

Note-se, também, que houve um certo desprezo pelo património, pois, neste período, a histórica Alta de Coimbra e o Palácio de Cristal foram demolidos.

Qualquer manifestação de hábitos ou costumes da vida do dia a dia (como a gastronomia, as artes e os ofícios, entre outros) é sentida como uma manifestação cultural.

Ou seja, em suma, no Estado Novo, tentou controlar-se a cultura portuguesa. Não só restringindo a arte e as formas de expressão em geral, como também fazendo uso da propaganda. Nas escolas primárias, havia imagens de Salazar e cantava-se o hino nacional; no espaço público, disseminava-se o slogan “Deus, pátria e família” e a ideia de Portugal como um país territorialmente extenso, devido às colónias.

Importa, também (claro está), mencionar as produções culturais e artísticas que eram autorizadas. Bibliotecas, teatros, o cinema eram uma realidade reservada a quem vivia nas cidades. No período do Estado Novo, as bibliotecas eram escassas – em 1958, eram 84, muito menos do que as 303 de hoje – e encontravam-se mal equipadas, tendo um papel sociocultural marginal.

E mais do que isso: a grande porção de população analfabeta (45%, em 1950) tinha o aacesso vedado a tudo quanto envolvesse a palavra escrita. Durante o período do Estado Novo, houve empenho na construção de escolas e atingiu-se, em meados dos anos 1950, o ponto em que todas as crianças em idade abrangida começaram a estar, de facto, matriculadas. Contudo, a obrigatoriedade de apenas 4 (e, depois, 6) anos de escolaridade deixava a educação dos jovens muito inatendida. As bases, que permitiam compreender os contextos e modos de expressão, mantinham-se frágeis. Os interesses intelectuais não eram estimulados nem era apresentada a verdadeira extensão da constelação de ideias e expressões humanas que já foram partilhadas e de que temos registo.

Assim, os portugueses foram vivendo numa cultura fabricada e fechada até à Revolução dos Cravos.

Foi só após o 25 de Abril que se pôde estabelecer a liberdade de expressão. A liberdade de expressão é o direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações – assim diz a Constituição Portuguesa de 1976.

Logo após a revolução, foram exibidos filmes antes proibidos, foram lançadas publicações satíricas. E, ao longo dos anos, o povo português pôde ver a multiplicação da publicação ou apresentação de obras, inlcusive a comédia e as obras que nunca seriam aceites durante o Estado Novo e vieram a justificar a atribuição de um prémio Nobel da Literatura a um português (refiro-me a José Saramago). Foi depois do 25 de abril que a cultura se tornou realmente cultura portuguesa, pois aí tornou-se espontânea.

Na verdade, a própria Revolução dos Cravos é, hoje (e talvez se possa dizer que sempre foi), um elemento marcante dessa cultura. Ainda mais: até podemos olhá-la como uma expressão de um povo – quiçá alguma coisa de inconscientemente artístico, com os cravos, as espingardas, o caráter (quase) não violento, a convergência e a união do povo.

Aliás, agora que os tempos estão a mudar e somos convocados a olhar para todos os lados da História, a identidade portuguesa, sempre tão associada aos Descobrimentos, pode estar num momento de crise com a frustração de encarar os seus enormes efeitos negativos, postos a descoberto de forma permanente – e o 25 de abril pode unir-nos de forma renovada.

Mas não só isso. A memória desta revolução também serve para nos manter comprometidos. Se a liberdade nos foi dada nova em folha, é preciso agarrá-la de forma segura e ter a certeza que não a perdemos ou corrompemos ao passá-la aos próximos.

Por isso, devemos ter espírito crítico em relação às tendências que se veem no mundo de hoje – a que Portugal é, saudavelmente, permeável. Até onde se pode ir sem que se ponha em causa a liberdade de expressão?

Uma dessas tendências é a reescrita de livros para retirar linguagem ofensiva (foram adaptados livros de Agatha Christie, por exemplo). Já a “cultura do cancelamento”, nas plataformas virtuais, é uma espécie de censura popular. Talvez tenha uma virtude pelo caráter popular? Mas, se o contexto virtual está equipado de mecanismos que propiciam a polarização, habituando-nos a desconsiderar opiniões diferentes – até que ponto é que o “cancelamento” é consciente, não poderá ser influência da própria plataforma? Por fim, a tentação de proibir uma palavra de forma absoluta: por melhores que sejam as intenções, não equivale isso a proibir de pintar de determinada cor ou traçar com determinada inclinação? É preciso também lembrar que nem sempre as intenções se materializam.

Voltando ao antes e ao depois, houve uma grande preocupação com a cultura e a arte, como sempre acontece quando se quer manter o poder e dominar um povo. Ou, então, talvez os homens do regime tivessem uma premonição – no fim, foram elementos de expressão artística que deram o sinal para o fim do regime. Grândola, Vila Morena e, de seguida, E Depois do Adeus foram as canções que serviram como senhas quando passaram na rádio – este difusor de cultura – na madrugada do 25 de abril.