“Women, Life, Liberty” – Após 1 ano de Resistência

Uma análise descritiva ao braço de ferro entre o Governo iraniano e as cidadãs revoltadas.

ARTIGOINTERNACIONAL

Sara Oliveira

11/19/20237 min read

A 17 de Setembro de 2022 o mundo foi recebido com a amarga notícia da morte da jovem de 22 anos Jina Mahsa Amini. Mal saberia a jovem que iria despoletar um enorme movimento: um grande braço de ferro entre o Governo iraniano e as cidadãs revoltadas com as condições a que têm sido sujeitas. Como é que isto se sucedeu?

Mahsa Amini foi detida, 3 dias antes do seu falecimento, pela Polícia da Moralidade por não estar a usar o hijab. Esta detenção, de acordo com os relatos dos seus familiares, contou com agressões que, mais tarde, culminaram lamentavelmente na sua morte. Por sua vez, o relato oficial emitido pela Organização de Medicina Legal[1] defendia que o óbito se deveu a falência cardíaca associada a uma condição médica anterior.

Os confrontos entre os cidadãos e o Governo iraniano não são recentes. A revolução de 1979 trouxe, além da desintegração e o fim da dinastia Pahalavi, uma revogação de direitos que afetou, predominantemente, a população feminina. As mulheres viram-se despidas de várias liberdades e reféns de recentes imposições legais, como o uso obrigatório do hijab.

Este conjunto de normas deve a sua origem a toda a natureza das disposições legais do Irão. Após 1979, as leis foram revistas, tendo sido atualizadas de acordo com a interpretação dos líderes iranianos do Alcorão.

O 1º artigo da Constituição da República Islâmica do Irão afirma que “A forma de Governo do Irão é a de uma República Islâmica, endossada pelo povo do Irão com base na sua duradoura crença na soberania da verdade e na justiça do Alcorão.”

Em janeiro de 2023, Ali Khameini afirmou que as “mulheres que não usem o hijab completo não devem ser consideradas pessoas fora da religião ou contra a Revolução Islâmica”[2], contrariando a intenção por detrás das normas legais. Porém, como veremos posteriormente, as restrições relativas ao uso compulsório do hijab foram apertadas, de modo a não se afastarem da sua origem primária: concordância com o Alcorão.

Desta exposição surge o foco dos protestos: o hijab veio para ficar em 1979 e nenhum meio, nem a violência, será excessivo contra abusos. Este artigo visa recapitular alguns dos eventos após 1 ano de resistência e realçar as atrocidades que os protestantes não deixam esquecer.

Após 1 ano de protestos

Como referido anteriormente, os protestos foram despoletados pela injustiça que marcou a morte de Mahsa Amini. Apesar do grande movimento ter implodido no dia 17 de setembro de 2022, já existiam relatos de indignação diretamente relacionadas com a Polícia da Moralidade e desrespeito pela obrigatoriedade de uso do hijab .

Em julho de 2022, foi publicado um vídeo nas redes sociais que gravou o abuso que vitimou Sepideh Rashno num autocarro. O vídeo, em vez de instigar medo, teve o efeito contrário. A resposta das redes sociais foi marcada pela indignação e revolta contra os maus-tratos da autoria de agentes da polícia da moralidade.

A generalização desta reação permite concluir que as cidadãs iranianas nunca foram alheias a esta situação, aliás, como poderiam? A morte da jovem Amini não as elucidou da permanente injustiça a que estão sujeitas. Este pensamento esteve sempre presente, demasiado presente. A imediata indignação, em vez da resposta natural, que seria o medo, revelou que esta revolução estava iminente.

O ponto de rutura estava muito, muito perto. O cheiro a pólvora já inundava ar, a bala já estava alojada no cano, só restava premir o gatilho, alguém tomar a posição de mártir.

Infelizmente, esta tem sido uma revolução marcada pela violência desde o seu começo. Contudo, as mortes das inocentes vítimas de um sistema conservador e misógino têm motivado a permanência da luta pelo acesso aos direitos fundamentais que são naturalmente inerentes.

Os meses de setembro a dezembro foram os mais marcados pelos confrontos e pelos grandes episódios de violência que o Governo desconsidera e dos quais se tenta distanciar.

A 2 de outubro de 2022, enquanto os estudantes de uma universidade no Irão protestavam, a polícia, disfarçada de civil, emboscou-os e alvejou-os com balas de borracha.

Num outro episódio, durante manifestações que consistiam em cantigas durante o período noturno, as autoridades tentaram silenciar esta prática com recurso à intimidação. Num dos dias de protestos, a 28 de outubro de 2022, atacaram os manifestantes com gás pimenta e granadas de fumo, tendo atirado estes objetos através das janelas, para o interior das casas, ficando uma incendiada.

Verificaram-se episódios semelhantes por todo o Irão, protestantes que sofreram as mesmas ameaças e intervenções policiais violentas. Uma das áreas mais massacradas terá sido a província Curda, de onde era natural Mahsa Amini. A 27 de novembro, foi anunciado o número não oficial de mortes nessa província. Contavam-se com, pelo menos, 105 mortos.

Os protestos, contudo, começaram a dispersar no início de janeiro de 2023.

A 8 de abril, por sua vez, a fiscalização do uso do hijab foi apertada. Assim, começou a ser usada uma tecnologia de reconhecimento facial de modo a identificar e reportar casos de desobediências às autoridades. Este mecanismo tem problemas que o Governo prefere por ignorar.

É evidente que estamos perante violação da proteção de dados. Estes sistemas, além disso, são conhecidos pelas baixas percentagens de precisão, aquando do reconhecimento de mulheres e cidadãos de comunidades não caucasianas, o que evidencia a possibilidade de identificações faciais erradas.

A 21 de maio de 2023 foi apresentado ao parlamento a “Bill to Support the Culture of Chastity and Hijab[AG28] ”, que pretendia intensificar as normas relativas ao hijab. A 23 de julho de 2023, o comité judicial e legal terminou a avaliação desta lei, tendo sido aprovada pelo parlamento a 20 de setembro de 2023.

A 16 de julho de 2023 foi anunciado o regresso da Polícia da Moralidade. A reinstauração desta entidade foi requerida pelo “público”, por vários grupos sociais e entidades e pelo presidente do poder judiciário, segundo o porta-voz das forças policiais, Saeed Montazer-Almahdi.

Relativamente às penalizações vemos que as leis oferecem poder discricionário aos juízes para a aplicação de penas alternativas às de prisão. Relataram-se casos de mulheres que foram condenadas a prestar serviço comunitário em morgues, sendo encarregues de limpar os corpos.

Adicionalmente, foram descritas situações de mulheres condenadas a frequentar aconselhamento psicológico, por manifestações de “comportamento antissocial” ou “distúrbio anti familiar”, tendo de apresentar um certificado aquando da conclusão da sua pena.

É de notar que as últimas duas medidas apresentadas visam ter um efeito vexatório. As mulheres são castigadas pela sua desobediência de maneiras visivelmente humilhantes e degradantes, o que se revela uma tentativa de quebrar a sua devoção à causa e de as usar como casos modelo, desencorajando práticas semelhantes.

O Governo iraniano revela a falta de flexibilidade em comprometer os valores religiosos que ditam as normas constitucionais, mesmo que implique que os cidadãos não usufruam dos seus direitos fundamentais. A manifesta revolta teve o efeito contrário ao esperado, já que as medidas sofreram uma grande restrição, afastando-se ainda mais do exigido pela população.

Não é realista argumentar que o impacto dos protestos é inteiramente equivalente ao que se noticiou e experienciou em setembro de 2022. Pode-se expectar que o espírito ainda não tenha sido totalmente eliminado, se adotarmos uma perspetiva mais otimista.

A luta pelos direitos fundamentais, não se iniciou, nem terminará, com Mahsa Amini, mas esta jovem foi quem a pautou, quem a anunciou para além da sua região, para além do seu país.

O apoio e o reconhecimento internacional são uma grande força motora e motivante para a persistência da resistência. Na verdade, vemos que a nomeação e vitória de Narges Mohammandi do Prémio Nobel da Paz, assim como, a atribuição do Prémio Sakharov a Jina Mahsa Amini, permitiram protagonizar mulheres que são o rosto da revolução.

Porém, estamos a assistir a uma revolução que, apesar de poder culminar na reatribuição dos direitos que são naturalmente inerentes, o seu fim não poderá ser previsto para breve.

A opressão do Governo não oferece tréguas e o número de mártires continua a crescer. Os confrontos apresentados representam uma parcela reduzida do panorama completo. Neste sentido, é necessário relembrar que cada morte que aumenta a nossa indignação, é, na verdade, muito mais que um número. Uma filha, mãe, amiga, colega real, mais uma família fragmentada.

Com efeito, em outubro de 2023 o mundo assistiu a mais uma agressão perpetrada pela Polícia da Moralidade contra uma jovem de 16 anos, Armita Geravand, que culminou, tragicamente, na sua morte.

Todos nós gostamos da história em que tudo está bem quando termina bem, mas a realidade não está ao nosso dispor. Os ataques não cessarão até os protestos dispersarem. As restrições terão tendência para ser cada vez mais apertadas. O povo iraniano tem toda a legitimidade para optar por zelar pela sua vida, em vez de uma causa. Qualquer um de nós teria.

A ideia não seria terminar o artigo num tom tão pessimista, pelo que não o farei . A revolução terá os seus frutos, mas a recolha não está para breve. Até lá, cabe-nos apoiar o povo iraniano, não deixando que nomes como Amini caiam em esquecimento, e sempre relembrando o mote: “Women, Life, Liberty”.


[1] Report No. 2 Pertaining Death of Mahsa Amini & Ensuing Events, emitido pelo Hich Council for Human Rights the Islamic Republic of Iran

[2] Artigo publicado pela NBC News a 5 de janeiro de 2023, pela autoria de Sanam Mahoozi

Este artigo representa única e exclusivamente a opinião da sua autora, não representando no todo ou em parte a opinião da Católica Policy Society.